Eis que vinha vindo o dia de
natal. Num tempo em que os cartões de felicitações, de mão em mão iam indo, correr
mundo. De tudo fazendo pra chegarem a tempo a seus destinos. E encheriam de
graça e luz, os olhos quando chegassem aos seus destinos. De bicicleta, na
bolsa do carteiro, a passearem pelas ruas e praças. E palpitariam os corações
dos remetentes, premeditando o semblante dos que receberiam. Haveriam de
amanhecerem junto de garrafa de leite no batente da porta. Dentro da agenda do
gerente da loja. Junto ao diário de classe da professora. Ao pires da xícara de
chá da dona da pensão. Pra finalmente irem repousar junto a latas de bombons,
buquê de flores e caixas de pães da Itália. A alegrarem as mesas forradas com
toalhas de motivos natalinos, com cheiro de vinho do ano passado.
Árvores urbanas se espreguiçavam
mansamente nos seus mais altos galhos, a dizerem que era tempo de as enfeitarem.
Tempo de se voltar a ser criança. Tempo
de se ser menino. Tempo de ter menino-Jesus,
vindo brincar de bola com a molecada no campinho. Verdes, verdinhos de jardim, nas
asas de Betularias enviariam seus acenos pra um casal de namorados no banco da
praça largados. Alegres, vistosas samambaias a discutir quem angariaria mais
olhares. De bolas coloridas se enfeitando, de cristais olhares. E os
piscas-piscas camuflados na folhagem do jardim, tiravam o dia pra dormir, e aguardariam
a noite pra acordarem velhos sonhos.
Havia uma, duas, três casas,
solitárias. E a rua, sem calçamento, sem iluminação, sem rua. Sem alegria de meninos brincando de bola. De
rua mesmo, apenas o nome. Rua do Colombo. Sendo aquela à hora terceira, os
meninos teriam ido pro campinho, lá embaixo. Encoberto pela algazarra de
vegetação ficavam. O mundo tinha uma vontade imensa de se mostrar solidário ao
tempo do advento. E pra isso revestia seu teto, de um rebanho de nuvenzinhas
pequenas! Tão engraçadas. E os meninos do cabelo de fogo, punham-se a chamá-las
de carneirinhos, Deus nem ligava. E suas avós, no alpendre da casa de dona
Marinete, se lembrariam, que aquela era a hora da misericórdia. E por-se-iam a
recitar um rosário, apressado, cheio de angústia e solidão. E as velhas
senhoras se lembrariam de quando eram meninas. E ficariam tão sonolentas, e
durante a reza cochilariam tanto. E acabariam sonhando com suas mães. Enquanto
os gritos coloridos da molecada a grudarem-se nas camisetas, listradas
numeradas, de fazer gol. Esbaforidas acabavam fazendo o que devia ser feito. E
corria e corria por entre o verde.
Rua do Colombo guardava nenhuma
comédia, mas pelo menos três tragédias. O homem da última casa que nunca falava
com ninguém. Quando saía era somente pra ir ao mercado. Um terreno baldio, onde um cavalo pastava. A
penúltima casa era duma velha que sofria de doença celíaca. Outro terreno vazio
que tinha um pé de Acássia solitário, plantado no meio da grama. Findava a rua
com a primeira casa, da menina triste da janela. Na cozinha, da casa do meio,
uma cadeira de balanço aproveitava o silêncio da manhã, e a despeito dos
pardais pipilando diziam assim mesmo: ren-ren... O teto havia se chegado,
pintado de um verde claro se valia da luz diurna pra definir a geladeira, o
fogão de estanho, o guarda-louça antigo. Junto das xícaras e taças de cristal,
um descanso de cachimbo de porcelana com duas piteiras nodoadas de fumo, um dia
pertencera a Seu Firmino, o marido barbeiro que fora embora, fazia anos.
Eis que vinha vindo, o dia de
natal. A menina da casa do meio permanecia na janela de grades de ferro,
fechada. Deixando ainda mais triste seu rosto triste. Sendo porém tempo de
natal, era tristeza boa, sincera. Um cavalo pastava no terreno baldio. Por que
sentia tanto medo? Tinha medo, do olho
negro do cavalo. No que pensava o cavalo? Aquele olho lhe ia tão dentro de si. Nos
recônditos porões da sua existência a tentar desvendar profusos segredos. De beijos
forçados, beijos proibidos. Coisas que sua mãe, nunca deveria saber, jamais.
Tinha medo. O professor de música um dia abusara dela. Preferia morrer a ver
algo tão abominável exposto. E odiava-se por isso, sentia-se culpada. As
pessoas têm o costume de julgar a partir de um lado apenas das verdades. Sabia disso
pelos comentários. -Por que Adelaide era uma menina tão arredia? Na escola, na
igreja, no parque da praça. Chegava a evitar o contato com as coleguinhas. Não dava
pra entender porque não queria participar de nada. A professora tocou-lhe
enquanto estava distraída e instintivamente ela a repudiou, foi traumático. Uma
vez, dentro da biblioteca municipal, se atracou com Dulce sua melhor amiga. Só
porque tomou de sua mão um livro que pegara primeiro. Na aula de catecismo irmã
Flora conversou com ela. Adelaide voltaria pra casa ainda mais triste. A bolsa
dos livros fortemente apertada contra o peito. A mãe reclamava pela demora no
banheiro. Mal sabia que se trancava ali, quando queria chorar. Despia-se e
ficava num canto abraçando a si mesmo. Sentia-se suja. O chuveiro prolongado, e
esfregava-se com tanta força que chegava a machucar a pele. Odioso contato do
professor, odiosos beijos.
Lá longe, muito além donde as
vistas podiam alcançar. Eis que vinha vindo, o dia de natal. Talvez para além do
fim do mundo, estivesse chovendo. E o vento na sua intrépida altivez viesse
perguntar: -Tá sentindo? E a menina devolveria a pergunta: -Sentindo o quê? -Cheiro
de natal? -E natal tem cheiro? E ouviria o vento a dizer que: -Lá longe, muito
além donde as vistas podiam alcançar, também o natal era triste. A mãe da
menina, chata como toda mãe devia ser, lembrou de suas obrigações. No silêncio
da janela, acabou mal-dizendo das mães que achavam que filhas eram suas
propriedades, das quais podiam usar a seu bel-prazer. Revisou mentalmente o que
tinha pra fazer. Recolher os panos no varal, porque Deus prometia chuva. E quando
Deus prometia dificilmente esquecia de seus compromissos. Mas como era natal
talvez ele estivesse muito ocupado devido a quantidade de pedidos aumentada. Em
papai Noel deixara de acreditar fazia três anos, desde o ano que seu pai
falecera. Quando ela tinha só nove anos de idade. O vento frio soprando forte
na vidraça aberta, veio lembrar-lhe de ir colocar as galinhas e os pintinhos no
grajau. Recolher os ovos da poedeira. O chiqueiro dos cágados carecendo de
reforma, mas só quando tio Jonas viesse somente ele pra ajudar nos reparos. Numa
casa onde só duas mulheres viviam tanta falta fazia o esteio da casa. Sua vó
dizia: -Minha “filha” nunca queira ficar velha nem viúva! Será o fim... E não
concluía a frase. Fim de que vó? Fim da vida? Fim do sonho? Fim do mundo?
Talvez fosse isso. A Rua do Colombo, talvez fosse o fim do mundo.
Era tempo de cajus no cajueiro de Seu Antonio.
E os galhos escalando os muros do quintal. O crime pelos meninos premeditado nunca
consumado. Dariam as Melipondias vazão
pra fartarem-se até se embriagarem do doce néctar do pomar de Seu Antonio
pedreiro. Ainda tontas, indo desdenhar das pobres flores da Acácia solitária do
terreno ermo. O pedreiro perdera o único
filho num acidente de moto. O rapaz morava em São Paulo. O corpo viera com a
esposa, de avião. Triste tarde de sepultamento. E o pedreiro nunca mais sentou
um tijolo. Ficou doente se encostou pelo seguro social. Adquiriu a doença da
tristeza, do isolamento do mundo. Assim era a Rua do Colombo, rua triste, de três casas de
três moradores triste.
So this Christmas
And what have you
done
Another year over
And a new one just
begun
And so this is Christmas
Eis que vinha
vindo o natal. Era tempo de cajus. Pra onde foram os meninos? O campinho agora era
só céu, mato, e um vento frio, escurecedor. Grossos pingos de chuva fizeram o
cavalo ir pra debaixo do pé de Acácia Ferrigínea. Sentada no chão Adelaide
fitava a árvore de natal da sala de estar. Cartões feitos com pedaços de folha
de caderno, frases tão sinceras. E Deus se inclinando por cima do seu ombro lia
junto com ela e sorria. O pisca-pisca dizia verde, vermelho, verde... Dona
Belinha sentada na cadeira de balanço, não sabia se dormia ou morria. Seu
Antonio no sofá, um lençol vermelho enxadrezado lhe ia até o pescoço se
queimando de febre. Lá longe, muito além donde as vistas podiam alcançar, uma
vitrola tocava a música daquele Beatles assassinado, que dizia: Então é natal!
E o que você fez?
Fabio Campos
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