O Quinto Natal

A rua dizia muitas coisas. Mas também se calava pra outras tantas. Dizia de luminárias novas, nos postes a deitarem cor alaranjada em tudo que estivesse ao alcance. E a cada recanto onde houvera escuro, por toda alta madrugada, agora ia luz. Ardentemente, desejaria o clarão do dia. Talvez uma velada e aflita necessidade que a noite passasse logo. Pela muita cor que havia antes ansiava. Vista daquele jeito, todas as coisas pareciam mortas. Isso se não fosse natal. Em tudo predominava o majenta, como em retrato antigo. Espremidas, as casas, de pé na calçada, soldados perfilados prontos pra revista de rotina. E assim permaneceriam mesmo sabendo que o comandante jamais viria. Nunca mais voltaria da guerra. E os piscas-piscas faziam de tudo pra alegrar os jardins.

Fazia muitos anos que Maria morava na quinta casa. Casa feia, acanhada, de fachada pobre. Pobre de traços. Feiamente pintada de amarelo. Uma porta cortada ao meio, metade fechada, metade aberta. Uma janela de uma folha de madeira inteiriça, seca, cega, surda e muda. Um dia talvez, teria sido pintada de vermelho, mas isso talvez não passasse de especulação. Riscos de giz desafiaram quarenta janeiros, perpetuaram-se no tempo. Duma distante infância de menina, esquecida, dizia em letras cursivas e toscas: “Maria”. O “M” mais parecia uma mola espiral, o “r” e o “i” abraçados. O “a” com seu rabo de cavalo, não queria conversa com as outras letras. Um panfleto desbotado anunciara a novena do natal de 1987, discolorido, esquecido. O piso cimentado acinzentado. Sufocava-se de poeira. Poeira das rodas de carro de boi que passavam na rua cantando, cravejando as paredes e as portas, com suas notas estridentes de espinhos. A abrirem feridas que jamais cicatrizariam. Nem nos olhos, nem nos ouvidos, muito menos no olfato. Um cheiro de palma ruminada sumindo das ventas dos bovinos, pra entrar nas ventas dos meninos. O filho de Maria completara cinco anos. João Pedro nascera tão doentinho. Ao completar dois anos teve pneumonia. Doera muito naquele ano, perto do seu aniversário, perto do natal ter que interná-lo. Os frios corredores de hospitais, nada de humano possuíam. Pobre bichinho deslocado, como gostaria de entender o que estava acontecendo. Por que tinha que ter aquela máscara no rosto? Por que não podia ir lá fora, brincar com as outras crianças? Da vidraça da janela o menino passarinho, de olhos tristes.

Papai por que não posso ir pra casa? Seu José Ivo bem queria dizer, mas não conseguia. Um nó na garganta. Dizer até que seria fácil. Difícil era conseguir convencer o menino que não podia ir pra casa por conta de uma tosse que lhe fazia engasgar e expectorar catarro com sangue. Lembrou do dia do seu aniversário. Antes de ir pro hospital passou na padaria, com o dinheiro que sobrou dos remédios, comprou um bolo pequeno. Teve que implorar aos exigentes funcionários do hospital pra deixar entrar, sem sucesso. Apelou a assistente social. Mas aquele povo não tinha coração. Não permitiria a entrada do bolo, somente o brinquedo. Uma pequena charrete de plástico, com carroceria puxada por quatro cavalos de cores variadas. Além do mais só um visitante por paciente, podia entrar no ambulatório. João Pedro sentado na maca de rodinhas, máscara no rosto, coberto até o tórax. Viu desfilar a sua frente, um a um, dos seus irmãos que com cara triste diziam: “-Feliz aniversário João...” E logo tinham que sair. A cada hora, o terrível momento da injeção, e aplicação de seringa do soro. Como convencer a criança a ficar imóvel, por horas? O enfermeiro pediu que Seu José distraísse o menino, enquanto fazia seu trabalho. Nos cavalinhos repousavam os imensos olhos de João Pedro. Seus cabelos lisos brilhavam sob a fluorescente, se impregnando do cheiro nauseabundo de formol.  O pai procurando mantê-lo entretido falou: “-João...Lembra do vovô Sebastião?” Confirmou com balanço de cabeça. “-Pois é! Ano passado no seu aniversário, o vovô lhe deu um carneirinho de presente...Lembra? Esse ano, ele me falou que lhe dará um cavalinho igual a um desses aí. Assim que você ficar bom, e sair daqui.”

O menino entendia, seu pai tentava apenas amenizar-lhe a dor, falando e prometendo coisas que jamais poderia cumprir. As lembranças ainda estavam muito presentes em sua cabecinha. Em junho, faria dois anos que Seu avô Bernardo havia morrido. Recordava, com tristeza e riqueza de detalhes, como tudo tinha acontecido. Quando chegava o tempo da colheita. A família toda ia pro sítio, pras batas de feijão e a quebra do milho na roça. Enquanto o caminhão avançava pela estrada de terra batida, levas de trabalhadores braçais nos aceiros e a beira do caminho a ganharem os roçados. A grande maioria, negros e mulatos. Vestidos em trapos de cores que um dia fora viva. Agora aos farrapos expunha braços musculosos e luzidios. Os que iam pras arrancas do feijão levavam enxadas e toras roliças de madeira pras batas. Os que iam pra lida com os rebanhos levavam nas mãos cordas de caruá, relhos de couro cru as costas, e pelo menos a bota direita tinha uma espora. Eram tantos homens que careciam do trabalho de jagunços pra apontar e vigiar o dia de serviço. Um marchante pra abater pelo menos dois bois, um carneiro e dez galinhas pro preparo da comida. O caminhão Chevrolet de boleia vermelha, avançando e avançando deslizava sereno no meio da imensa ceara verdejante. Sob o céu azul anil um sol que tinha olhos, e boca e sorria como uma flamejante bandeira da Argentina.

Enquanto tudo isso, de aparente aparência vivia, o anum sobreveio, sobrevoando a plantação. Na esperança de predar gafanhotos, mariposas, e caso o lavrador bobeasse, o farto cereal pra seu alimento. As mulatas debaixo dum umbuzeiro no barranco do açude preparavam a ração da mantença dos trabalhadores. O fumo de lenha e de caldo de feijão a ganhar os prados. Lembrou do dia que tia Candinha lhe acordou bem cedinho pra irem até a mata. A cata dum pé de juá, pra tirar a entrecasca, pra fazer uma meizinha pra curar dor de mulher. Levava o sobrinho mais novo pra dar a primeira talhada no caule do pé de juá. Para que a planta não morresse, tinha que ser daquele jeito, por um menino inocente o primeiro talho. Os freios rangeram, e gemeram nas rodas. Anunciavam que o destino tinha vindo ao encontro deles. João Pedro pensativo apoiado no gigante da carroceria demorou-se um pouco mais antes de descer. Percebeu que algo de grave havia ocorrido ali. No alpendre da casa, tocadores de pífano. Não sendo tempo de novena, tratava-se então de féretro na residência. Não deu outra vô Bernardo tinha morrido. Vaqueiros tomavam fartos goles de cachaça e aboiavam em honra ao defunto do avô de João Pedro.
       
Seu Bernardo achou de morrer, bem no dia de Nossa Senhora Conceição Aparecida. Foi o mais triste oito de dezembro da vida deles, tanto do filho José, quanto do neto João. Triste dia no Sítio Coité dos Bravos e redondezas. Foi só o féretro ganhar o caminho do cemitério, e o mundo se fechou. Acinzentou-se pro lado de Pernambuco. E o dia claro se apartou do céu. Fez-se em vulto. Pegando as veredas lá pras banda do Sítio Serrotinho e Grotão. E desabaram das nuvens do céu as águas. Seu José prometeu que nunca mais poria os pés naquele sítio, enquanto vida tivesse. Seu filho João Pedro acabou ficando muito doente pela morte do avô. Nunca mais teve saúde.  E o choro do menino se ajuntou ao choro de Deus. Tão triste era uma tarde quando tinha um sepultamento. Tudo isso o menino revia no leito do hospital. Seu pai estava no corredor.

Depois da morte do avô, João Pedro ia ficando cada vez mais doente. Não teve mais saúde, nem tinha gosto pra nada. Os pais levaram pra vários especialistas sem que nenhum deles descobrisse a origem do mal. E Seu Bernardo lhe aparecera muitas vezes em sonho. A dizer-lhe que estava bem onde estava.  E que ele não se preocupasse. Pediu muito que ele voltasse a se alimentar. Pra ser um menino de dar orgulho aos pais, e crescer forte. Mas essas coisas não são coisas a que nós temos poderes sobre elas. São amarras do destino. O que Seu José, dona Maria, e João Pedro jamais entenderiam. Quatro natais, era o tanto de natais que aquele menino tinha passado até então. O quinto num leito de hospital sem saber o que viria.


 Agora ia alta a noite, e ninguém mais transitava pelos corredores do hospital. O que mais havia ali era silêncio. José caminhava a esmo. Uma parede lisa pintada de verde, uma janela com persianas fechadas, um extintor para incêndio, uma maca abandonada, um aviso com letras vermelhas: “Ambulatório”. Outra janela, sem persianas. Olhou através da vidraça, viu lá longe, muito longe, talvez no umbral de uma casa, piscas-piscas. Só então se lembrou que era natal. João Pedro até então deitado como em profundo sono sobre a penumbra do quarto de hospital. Acordou-se, abriu os olhos. Desceu da maca, os pés de seda, descalços, tocaram o chão frio. O menino ganhou o corredor. Alguns trechos, mal iluminado o corredor. Um enfermeiro apoiando os braços no braço da cadeira dormitava, nada disso via. Veio, e veio andando o menino. Andando foi, até encontrar seu pai. Seu José estava ao lado da gruta de orações. Nossa Senhora de Fátima a olhar, com olhar sereno, as mãos estendidas.  Várias velas, num pires e no batente, todas apagadas. Percebeu que seu pai rezava de olhos fechados. Tocou-lhe o braço mas ele não percebeu seu toque. Chamou “-Papai...” Mas ele não o ouvia. De repente um facho de luz desceu sobre o menino, que se foi. Aquele seria seu quinto natal.

Fabio Campos

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