Adalberto nunca tinha passado um
carnaval daqueles. Na verdade nem sabia se aquilo poderia ser considerado um
carnaval. A casa era só uma choupana no meio da caatinga. Duas caídas d’águas,
um alpendre escorado por toscas estacas guarnecidas de ganchos. Ornados de
cordas de caruá, amolecida de tanto trabalho duro. Num canto arreios duma
montaria, um relho e um chapéu de couro de boi, tudo tão gasto, ensebado. Um
balaio de vime, atarefado de palma, um facão de cabo preto embainhado, um par de
alpercatas Xô-boi. Dois homens Adalberto e Maurílio sentados num “Péla-porco”.
Os pés cruzados embaixo do banco davam guarida pra um cachorro de pelo branco. Macerando
verbo e fumo de rolo proseavam, os amigos. Coisas desinventadas por gente do
mundo. Coisas que até Deus que é Deus duvidava.
De limo negro as telhas diziam
tristeza. Uma bica esturricada de tempo, dormia pros lados do oitão esperando
chuva. E quando viesse, porque em fevereiro sempre vinham, choraria a desaguar
num tonel. E havia um céu perfeito a flamular de azul, sublinhado dumas
nuvenzinhas...Brancas que só! Com o rei brincava de luz, não luz. Do terreiro
até aonde as vistas quisessem ir tinha mundo pra ver. Tinha uma roça que não
dizia nada. Com paciência de Jó, aguardaria os obreiros que num dia daqueles não tardariam.
Formigas formigando a epiderme da mãe terra, caravaneavam tudo que pudesse
fornecer alimento no inverno. Pros recônditos porões escuros.Morno, úmido e
cheiroso ventre da mãe terra campeavam. Onde a cigarra laboriosa cantava
angariando longínquos ouvidores. Mangangás nupciais cortejariam xim-xins,
orquídeas e frutos dos mandacarus.
A conversa estava boa, mas era
preciso dizer pra que estavam ali. Maurílio filho de Seu Claudomiro e dona
Paulina, tinha nove irmãos, Claudomero, Teodorico, Teodebaldo, Teodeberto,
Teodomiro, Dagoberto, Ferdemundo, Ferdinando e Betânia. Adalberto, caboclo
bem afeiçoado vindo das bandas do Sítio Capim. Apareceu por ali, pra passar uma
temporada de plantio de roça com os tios. Conheceu Betânia e cinco anos já fazia
que haviam se casado. No mesmo dia, na mesma igreja e com o mesmo padre casou também
Maurílio, com Robevânia que acabou de entrar na história. E de quebra, era
prima legítima do noivo. Todos, com exceção de Maurílio, foram embora pra São
Paulo. No sertão o povo tem umas crenças que devem ser respeitada, isso porque
fazem parte da natureza humana. Diziam os mais velhos, que casamentos de dois
parentes no mesmo dia não era coisa muito recomendada. Porque um, iria carrear pra
si, todo tipo de sorte predestinada pro outro. No tempo que os amigos se casaram
eram jovens, e se quer se aperceberam disso. Foram pro mundo, e cada qual, seguiu
seu cada qual.
De dito popular, em dito popular vive
o sertão. Tem um que diz que, Deus não dorme. Bem diz, não dorme. Não fala em
cochilo. Pois acreditando que uma vez perdida, assim, quando alta vai a
madrugada, e o povo está mais desocupado de aporrinhar com seus infinitos
rosários de pedidos. O Criador deve pelo menos dar um cochilo. Pois justamente
entre um desses benditos cochilos, é que Leviatã aproveita pra pintar os
canecos. E se conselho fosse bom não se dava vendia, mesmo assim o amigo
desconfie dos que dizem: “O diabo não é tudo o que pintam.” Pois acredite, é tudo
o que pintam sim, e um bocado mais. Acontece que o tempo gastou mais três
lustros das histórias dos dois amigos. Adalberto tornou-se empresário do
transporte alternativo. Sua modesta frota cobria linhas rodoviárias em todo o
sertão. Prosperou o filho do camponês, que no passado teve dias de amargura. Uma águinha salobra escorria dos olhos quando lembrava os primeiros anos de casado.
Morava numa tapera, numa situação que era de cortar coração. As histórias
sofridas das canções de Luiz Gonzaga e Teixeirinha eram luxo diante do que
passou. Guardara de lembrança uma foto do tempo que era fichado nas Frentes de
Emergência, do governo “da Coalização Arenista” Guilherme Gracindo Soares
Palmeira, o bacharel em Direito tido como o redentor da pobreza. Os sertanejos como
Adalberto, à época o tinha como um homem abençoado. O suporte que dera para que
a Sudene implantasse aquele programa que mataria a fome de tantos. Na foto
Adalberto ao lado de outros “cassácos” assim eram apelidados, era só couro e osso. Com
fé em Nosso Senhor! aquilo seria coisa do passado. Hoje gozava de uma vida confortável.
Em sua chácara na praia de Miaí era onde ultimamente passava os feriados
prolongados com a família, inclusive os carnavais. Acontece que deu vontade de
voltar as origens e por isso estava ali, ao lado do velho amigo Maurílio que jamais
saíra do sítio Pau Ferro.
Maurílio desde que casara nunca
saíra dali. Uma moradia digna pra si e sua família não conseguira na vida. Juntamente
com os três filhos. Dois rapazes, uma moça e a esposa Robevânia, morava na
mesma tapera que dava sombra pros ossos dos seus velhos pais. Seus avós moravam distante
dali só algumas braças. Quando era a tardinha sempre ia ver vó Orminda e vô Juliano.
Era um casarão antigo de portas e janelas enormes lembravam os tempos coloniais.
O pé direito ia lá nas alturas. E o telhado de tão pesado rangia num lamento nos dias de
ventania muito forte. Ao entrar no casarão se anunciava: “-Ô de casa?” E ouvia:
“-Ô de fora! Quem vem lá, que venha de paz!” Dona Orminda na penumbra da
cozinha ficava olhando, sabia que era seu neto Maurílio. Parado no umbral da porta principal.
Abria o ferrolho bem devagar e vinha até onde ela estava. “–Sua benção vó!” E
esticava o mãozão cascudo, de dedos nodosos, de capinar roça e amansar boi
brabo. “-E por que “meu fio”não mandou o homem entrar ‘tombem’?” “–Que homem
vó? Vôte! Eu ando só..." "-Não senhor tinha sim um homem ali por trás de “ôcê”
inda’gora.”
Domingo de carnaval, e se ouvia
ainda o canto da cigarrinha, dos bem-ti-vis rodeando a casa. Os acordes de Zé
Pereira forjaram-se num chiado vindo duma boca de som de um antigo rádio, em frequências
de ondas médias. Robevânia a pedido de Maurílio serviu vinho ao ilustre
convidado, afinal era carnaval. Um garrafão posto entre eles colocou animosidade
ali. Copos tilintaram em brindes. Estalos de língua, alegria a muito não vista
naquela morada chegou em sorrisos tintos. As teias de aranhas atravessadas pela
luz de fretas coloriam feito confetes e serpentinas. E o pó da poeira caindo dos
caibros suspenso no ar diáfano. Uma coisa Adalberto observara a esposa do amigo,
continuava a mesma. Sempre a admirara. Esmerada nos gestos. Parcimoniosa no
proceder. Os longos cabelos negros, sedosos, compunham belamente seu rosto. O
colo gracioso. Mesmo sabendo corpo proibido, um dia a desejou. No íntimo do seu
coração agora a consumia. Maurílio, Adalberto e Robevânia ganharam o caminho do açude.
A banhar-se do fogo das paixões contidas. Soprando seu sopro de fazer
cócegas nos ouvidos o Caboclo vermelhinho sorria. Seu sorriso cheio de dentes, e
baba viscosa, luxurienta.
“O profeta Natã diante do rei
Davi contou-lhe a seguinte história: Dois homens, um rico e um pobre. O rico
possuía muitas ovelhas, enquanto o pobre tinha apenas uma, que cuidava muito
bem. Um viajante aproximou-sedo rico pedindo comida. O rico então pegou a
ovelha do pobre. A única que aquele possuía, e tomando-a como se fosse sua a deu
ao nômade. Enchendo-se de cólera o rei Davi esbravejou: “-Tão certo como meu
Deus de Israel vive! O homem que praticou esta infâmia merece a morte! Deve ele
pagar com a vida quatro vezes mais do que foi o sacrifício do cordeiro, pois
praticou o que é mal aos olhos de Deus e sem o menor remorso!” Natã no entanto
advertiu-o: “-É o senhor meu rei, este homem! Eis que o Senhor Deus de Israel
me disse: “-Eu ungi você (Davi) rei de Israel, e o livrei das mãos de Saul. Eu o
tornei mestre da casa e as esposas do mestre ficaram em seus braços. Eu dei a
casa de Israel e Judá. E se isso tudo fosse pouco eu lhe daria muito mais. No
entanto o que fez você? Sacrificou a Urias “o hitita” fez com que fosse ferido
de morte, a fio de espada. E tomou a esposa dele como sua. Como castigo a
espada jamais deixará tua morada.”
Betsabá esposa de Urias banhava-se na varanda de sua casa. Do seu
terraço Davi a viu, e desejou-a no seu coração. Mandou chamá-la até ele, e deitaram-se em
coito. Disto nasceu-lhes um filho. Aquele fruto do pecado viria a perecer como
castigo."
Adalberto tinha uma pergunta mais pra Maurílio. Queria saber se o amigo não tinha ambição de crescer na vida. Sair
daquele fim de mundo, ir embora. Podia até deixar Robevânia por uns tempos, com
os filhos. Ir aventurar-se no Sul do país, pediria emprego a um seu irmão próspero empresário no ramo de construção. Aquele ouvia, e apenas cantarolava baixinho uma música do cantor rei das paradas que dizia: "As folhas quando caem nascem outras no lugar..." Dois
mais estavam ali, embora eles não viam. Natã, que meneava a cabeça de desaprovação.
E Leviatã, largueava mais e mais o asqueroso sorriso,
afirmativamente. Afinal era carnaval.
Fabio Campos 10 de Fevereiro de
2015 *A gravura que ilustra este conto é uma réplica de Óleo sobre Tela do pintor C. Clarck.
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