Boneca de Trapo

Eliane estudou no grupo Escolar Padre Francisco Correia. Naquele tempo não passava duma menina, nascendo os peitos ainda. Até os treze anos a Rua de Zé Quirino, era tudo o que conhecia na vida. Seu único mundo. Aquela rua fora o ventre que lhe gerou, a puta que lhe pariu. Filha bastarda, de pai anônimo. Poderia, ser filha do açougueiro, do sapateiro, ou o dono da banca do jogo do bicho. Rua de Zé Quirino, sua casa, sua sala de estar, seu quarto, sua cozinha. As margens do Panema seu quintal. O rio, que tanto lhe deu por herança: pele morena, os olhos castanhos, os longos braços que nadaram, e nadaram aquelas águas. As pernas engrossariam a correr nas suas areias. A escalar as montanhas do Cristo redentor, e do Cruzeiro. A encher a roupa de carrapicho, as pernas de latanhos de rasga-beiço, calombos de urtiga. E os cílios, de tanto mergulho nas águas salobras, pareciam sempre molhados. 

De lá do terno passado retornou, numa foto de primeira comunhão, na igreja Sagrada Família. Se havia colocado de pé, ao lado duma fila de meninos e meninas, vestidos de branco. Em segundo plano lá estava. Os garotos trajavam ternos, gravata borboleta e calças curtas, as meninas como freiras mirins. Segurava em cada mão, um catecismo e uma vela enlaçada por uma fita vermelha. Não sendo Eliane o foco principal do flagrante, no entanto, atraía para si a atenção, pelo traje esdrúxulo, uma ínfima blusa, uma mini saia, sandálias de salto. Havia um quê de ingenuidade em seu terno semblante. De criança que não conhecera ainda a maldade humana, não em todas as suas nuanças. Sequer se percebia descriminada pelos demais que ali se encontravam. Muito embora existisse um preconceito, não de todo velado. Jamais imaginava o que o destino lhe preparava. Para sempre a guardaria na mente.

Os filhos de família tradicionais santanenses juntavam-se aos filhos da pobreza da periferia. Nos eventos cívicos e religiosos se misturavam. Desde o velho grupo escolar, onde ocupavam as mesmas bancas, sentados lado a lado. Meninos discriminavam meninas como Eliane por serem pobres. Sem saberem que meninas como ela poderiam ser sua irmã. Somente muitos anos depois ficariam sabendo que seus pais muitas vezes deixavam suas mães em casa e, na calada da noite, ia pra periferia deitar-se com pobres mulheres. E estas se submeteriam aos caprichos sexuais e teria filhas, como Eliane. Com aquelas mulheres teriam filhas, e não trariam o nome do pai na certidão de nascimento. Talvez um dia quando fosse dormir, sonhasse com um pai a pedir a benção, um pai que lhe levasse a passear na festa de Senhora Sant’Ana, e que se lembrasse do dia do seu aniversário. As semelhanças físicas com os filhos legítimos as denunciariam. E viriam as brincadeiras maldosas, as comparações. No grupo escolar, as diferenças quase se anulavam. Quase, não fosse os apelidos, de ”cabelo pichaim”, “boca de caçapa”, “Maria mulambo” que os meninos punham, em meninas como Eliane.

Estávamos no primeiro ano da década de setenta. O sertão enfrentava uma de suas piores secas. Pelas estradas que acessavam as cidades do interior nordestino, levas de retirantes. Deixavam pra trás dias de amargura, a ameaça de morrer à míngua. Preferível partir a ter as tripas puxadas pelo carcará. Virar pasto de ave de rapina, feito suas últimas cabeças de gado assim vitimadas. Pra fugir da fome e da sede implacável, mulheres virariam lavadeiras, engomadeiras, empregadas domésticas, prostitutas. Os homens estivadores, almocreves, jagunços, exímios jogadores de carta. E construíam suas rústicas moradas na periferia das cidades. Caso contrário fazia “A Triste Partida”. Pro sul do país, pra construção de Itaipu, da ponte Rio-Niterói. Seu Ozéias da bodega, depois de ver a propaganda do governo na Revista “O Cruzeiro” foi bater no meio da floresta amazônica, trabalhar na construção da Santarém-Cuibá. A nação brasileira era comandada pelo chefe das agulhas negras General Emílio Garrastazu Médici, com mão de ferro governava. O “Garrafa Azul” perseguiu todo que se mostrasse contrário a sua forma de gerir os destinos do país. Deu um fim as guerrilhas no planalto central. Com uma recessão econômica tacanha pôs freios na inflação, o consumo que já era acanhado refreou. Poucos tinham poder aquisitivo. Só a classe mais abastada podia possuir geladeira e televisão.

A propaganda do governo chegava aos mais longínquos rincões. Até mesmo nos álbuns de figurinha, nas bancas de revistas, que as crianças compravam pra colecionar e colar. Figurões do alto escalão do governo, ministros Jarbas Passarinho, Mário Andreazza, Delfin Netto virados figurinhas que iam coladas, ao lado de cantores da jovem guarda, lutadores de teleket e comediantes. Livros, revistas, almanaques eram as maiores fontes de conhecimento, lazer e entretenimento. As bancas de revistas, cafés, lanchonetes eram pontos de encontro de jovens e intelectuais.  Revistas com encartes, discos compactos, fitas k7, revistas com nus artísticos: playboy, Ele e Ela, tinham venda proibida pra menores de 18 anos, virava objeto de desejo dos meninos. Enciclopédias vendidas porta a porta, enalteciam o sesquicentenário da independência, eternizada na música de Miltinho. A Seleção Canarinha de Zagallo, virada mito, nos campos de Guadalajara. O narrador mexicano mais apaixonado por nossos craques que por seus patrícios. Lá fora ficávamos conhecidos como o país do futebol, do samba de Dorival Caymmi, das mulatas de Sargentelli, pintadas por Di Cavalcanti. Portinari retratou o sofrimento do retirante. Ter um fusca e um violão, era um sonho nacional.  As mulheres imitavam os trajes e o cabelo de Jackeline Kennedy, O homem pisando na lua, Onassis o símbolo de riqueza.  “Dona Flor e Seus Dois Maridos” da cidade de Salvador, da Bahia de todos os santos, de todos os pecados, de Jorge Amado. Leila Diniz quebrando tabus. Foi vendo e vivendo tudo isso que Eliane cresceu.

Cedo Eliane aprenderia que viver não era nada fácil. Cedo aprenderia que o mundo em que vivia, era um mundo cão. Via, sem ter direito a perguntar nada, homens de toda espécie, jogadores de baralho, boêmios, comerciantes, feirantes, entrarem na sua casa, e no dia seguinte irem embora. Homens que olhavam pra seu corpo de menina, com olhares de cobiça, de gulodices. Demorando-se propositadamente sobre seu sexo, peitos e bunda como se sevassem.  Lá dentro do Panema, bolinada seria por um rapaz afoito pra quem deu ousadia. A primeira menstruação veio quando estava brincando de pega com outras meninas. Pensou que tivesse levado um corte. A mãe explicou-lhe “-Minha filha você agora é uma moça.” Por noites teve febre, delírios, pesadelo. Sonhou com um homem negro, muito gordo, vestido de paletó e gravata com chapéu de massa na cabeça, sapatos lustrosos, anel de ouro com pedra verde no dedo. Dizia que sua mãe tinha morrido a pegava no colo e a levava. Era noite, e iam entrar num carro preto que estava estacionado a porta. Dentro do carro o chofer lhe sorria um sorriso cínico, com um dente de ouro brilhando. E queria gritar por sua mãe, mas não conseguia. 

Eliane decidiu que já era tempo de ir embora. A Rua de Zé Quirino ficara pequena, Santana do Ipanema não fazia mais, o menor sentido. Estudar pra quê? A sétima série já repetira duas vezes, cansada estava de estudos. Namorou um rapaz que tinha o apelido de “Bem-te-vi”. Com ele perdera a virgindade, também com ele provou maconha pela primeira. Afinal já fizera dezesseis anos. E com outra amiga foi morar em Maceió.

Na capital alagoana Eliane aprenderia muito mais. Se Santana do Ipanema descobrira o mundo cão. Maceió apresentou-lhe as delícias do inferno. Pouco a pouco foi se inteirando do poder que exercia sobre os homens. Poder de tirar do próprio corpo seu sustento. Decidiu que dele, e com ele, ganharia fama e fortuna. Investia parte dos ganhos em salões e academia. Em pouco tempo o que era belo, tornou-se extremo. Exuberância de seios, coxas e bunda colossal. Nada mais nela lembrava aquela cândida figura da fotografia. Queria tornar-se famosa, tanto que sua terra natal tivesse orgulho da filha ilustre. Pra isso precisava ser manchete. Mandou um aviso pra um jornalista duma emissora de tevê, dizendo que seria a primeira garota a fazer Top Less em praias Alagoanas. Hora, e local combinado. Noutra semana Eliane foi primeira página do jornal de maior circulação no estado. Passou a ser programa de celebridades, políticos e era vista frequentando festa de gente importante. Até um sambista de renome nacional compôs uma música pra ela.

“Teka rendeira, Eliane praieira/ Vamos pra Paripueira/Vamos pra Paripueira/ Vai ter sururu/Vai ter sururu/E o maré fica na beira da Lagoa de Mundaú/ Da Lagoa de Mundaú/Da Lagoa de Mundaú."

Mas o tempo cruel, vertiginoso com seu prazer mórbido, de enterrar na areia movediça do destino os mais coloridos dos sonhos. E nossa boneca de trapo novamente voltaria a ser destaque nos jornais. Desta vez, na página policial. Nua sobre uma cama de quarto de motel Eliane. Morta com três tiros.



Fabio Campos  18 de Fevereiro de 2015

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