Dublez de Escarnecedeira

Chamavam-na simplesmente de Maria. O mais comum dos nomes de mulher, no sertão nordestino. Nascidas vias de regra, no seio de famílias pobres. Diferente não fora com Maria Pastora. Casinha de taipa, bem no pé da serra do Gavião. A infância desenhada, no espinho de limoeiro, na folha da palma e do mandacaru, encravados intumescência de seiva. O desabrochar dos anos, feito a flor do maracujá mudou-se o sexo. Em duas cabacinhas de melão viu mudar seus seios.  No buscar de água do barreiro morenou a pele, no desfrutar do umbu-cajá adocicou os lábios. E de tanto banhar-se no negrume da noite do sertão, pretizaram-se os cabelos.

No dia de São José, ia o povo a vila, pra acompanhar a procissão e missa, em honra, ao santo devocional da paróquia de São José da Tapera. Toda uma preparação envolvia aquele dia tão esperado, uma novena de orações e ladainhas noturnas, antecedera aquele culminante ato religioso. Um grupo de senhoras zeladoras da igreja, de casa em casa haviam ido, angariando doações que serviria de prendas pro leilão. Senhor José Abadias, pai de Maria, como a maioria dos camponeses que tinha o nome José por pré-nome, devotos que eram do santo,  ensejando o momento festivo vestiam terno, ou punham sua melhor roupa. E os amarrotados chapéus dos dias de labuta substituídos eram por chapéus de massa Coty, Prada ou Panamá. O ano inteiro guardados justo para aquela ocasião. Montados em seus cavalos acompanhariam a comitiva que levava o andor do santo. Velas acesas sobre castiçais de porcelana, imagens de São José, sentadas sobre mantas estampadas nos batentes das janelas das casas. Ricamente paramentado, de estola alva e roxa, porque era tempo da quaresma, o padre ladeado do bispo com mitra e báculo dourado. Sisudos pelo que exigia o ato iam os coroinhas, carregando lamparinas, vibrando matracas.

Os dias daquela devoção eram sempre marcados pela iniciação do período de chuvas. Sendo por acaso o ano seco, parte dos fiéis seguiria o cortejo, praticando algum tipo de expiação. Homens vestiriam hábitos franciscanos, pés descalços, cocuruto da cabeça raspada, ou carregaria uma cruz pesada às costas, algumas mulheres vestiam-se como freiras, outras iam com véus na cabeça, levariam nos braços imagens de santos, ex-votos,  e pequenos oratórios.   Esperavam com isso que a misericórdia divina lhes trouxesse indulgências em forma de chuvas. No passado viera de Portugal pra aquela freguesia, o padre Joachim Setubal e trouxera uma tradição que permanecia até então na época de estiagem. Nove rapazes chamados José com idade entre 18 e 20 anos seguiria a procissão, carregando pedras de até cinco quilos aos ombros. O que representava penitência pela seca. E nove moças chamadas Maria iam levando ramos de catingueira, e palhas de ouricuri, as duas plantas nativas mais comum do semi-árido, simbolizando a resistência do sertanejo. Jumentos e carros de boi davam a procissão às mesmas características da caravana do povo de Deus conduzida por Moisés e Araão  quando deixaram o Egito.  Naquele ano Maria Pastora estava entre às noves, e conheceu José Agripino um jovem do sítio Gameleiro que seguia a procissão com uma pedra ao ombro. Foi amor a primeira vista.

“Disse Josué também ao povo: santificai-vos porque amanhã fará o Senhor maravilhas no meio de vós. E falou Josué aos sacerdotes dizendo: Levantai a arca da aliança e passai adiante deste povo. Levantaram pois a arca da aliança e foram andando adiante do povo. Chamou pois Josué os doze homens escolheram dos filhos de Israel, de cada tribo um homem. Subiu pois o povo do Jordão no dia dez do mês primeiro e alojaram-se em Gilgal do lado oriental de Jericó. E as doze pedras que tinham tomado do Jordão, levantou-as Josué em Gilgal. E falou aos filhos de Israel dizendo: Quando no futuro vossos filhos perguntarem a seus pais dizendo; Que significa estas pedras? Fareis saber aos vossos filhos dizendo: Israel passou em seco este Jordão.(Josué: 3:5-6;4:19-22)”

José e Maria se deram em namoro, e o fogo da paixão acenou-lhes breve casamento. Os banhos foram proclamados, padrinhos e madrinhas convidados. E no tempo aprazado as bodas celebradas. Maria Pastora vestida de noiva ainda mais bela ficaria. José o noivo, por todo o dia de festa uma só simpatia. Não faltou um trio de forrozeiros com sanfona, zabumba e triangulo e se ouviu um autêntico forró “pé-de-serra”. O que tornava tudo ainda mais animado. E seguiu seu caminho o destino. O casal foi morar numa casinha lá embaixo beiçando o sopé do serrote. Donde havia um poço profundo que minava água o ano inteiro. Os noivos realizavam com prazer seus afazeres, e era tanto o amor entre eles que não raro deixavam suas obrigações para se entregarem a desvairado amor caliente.  Numa das ocasiões que acabaram de se amarem, ali mesmo no meio do roçado, ainda despidos, Maria Pastora em rompante desvario teria declarado ser ele tudo o que mais amava e queria na vida. E que nada no mundo, jamais acabaria com a felicidade que agora sentia. José como era um homem temente a Deus advertiu-a: “-Maria, diga pelo menos que tudo está na mão de Deus. Ao que ela retrucou: “-Que mão de Deus que nada! E por acaso as mãos que estão agarrando esses teus bagos é a de Deus? É isso aqui que me faz feliz homem! " "-E é isso que vai te deixar prenha, a  botar moleque no mundo!”. Os anos se passaram e os aguardados filhos não vieram. Muitos anos depois viriam. Mas só depois que Maria Pastora se desenganara do marido e a decepção,  a levaria a traição. De outros  homens que levou pro leito conjugal tivera três filhos. E José Agripino os criou como sendo seus. Mas um dia veio a descobrir. Nesse tempo eles já vivam na cidade, eram agora prósperos comerciantes,donos de um mercadinho de secos e molhados. Não suportando viver sabendo de tal situação, José amargurado entregou-se ao vício da embriaguez, muito doente ficou e acabou morrendo.

Maria Pastora tocou o barco. Mulher fogosa, de meia de idade, com as carnes rijas, tudo ainda no lugar. Bem sucedida no ramo de comércio, não faltava pretendente. E acabou que assumiu um relacionamento sério com um soldado de polícia reformado, que já fora casado mas agora vivia separado. Na verdade pai de um dos seus filhos. O polícia gostava de moto, não perdia uma corrida de MotoCross nem os festivais de encontros de motoqueiros. Em que se vestiam com roupas pretas,muitas peças metálicas e também pircings e tatuagens  Acabou montando em sociedade com a viúva, uma loja de peças automotivas e venda de motos semi-novas. Tudo ia de vento em popa. Os três rapazes estudavam que era uma beleza logo se formariam dando orgulho a mãe. Um tio de Maria Pastora que a muitos anos vivia  em São Paulo, lhe  fez uma visita e comentou: “-Pôxa! Minha sobrinha graças a Deus você está bem, eh?” Ao que responderia: “-Graças a Deus? Eu não trabalhe não...Me acordando cinco da manhã todo dia pra ver sevem das graças de Deus! E o tempo tornou a torrar as horas, queimar os dias, ferver os meses, cozinhar os anos. E os negócios de Maria Pastora começaram a dar pra traz. Duplicata não paga que se vencia, prejuízo grande em mercadoria vencida, dívidas e mais dívidas se acumulavam. Por fim a banca rota. Pra sobreviver Maria teve que transformar o mercadinho num bar que acabou virando cabaré.

Apesar de tudo Maria Pastora gozava do privilégio de contar com influentes amizades. Prefeitos, empresários . O fato de ser, uma mulher, mesmo madura, bastante desejada pelos homens era ponto a seu favor. A presença constante de gente da alta, fazia com que o bordel fosse frequentado por homens de dinheiro. O comércio do corpo não demorou trouxe estabilidade pra dona. Com direito a uma retomada de vida. Dando até pra juntar dinheiro no banco, pagar faculdade dos filhos, comprar alguns imóveis. Inclusive uma chácara na praia da Barra de São Miguel. Semana santa, era só mais um final de semana prolongado pra curtir o mar, a brisa e os coqueirais, música, churrasco, uísque com água de coco.
Na hora de voltar pro sertão, o carro ficava abarrotado de frutas, apetrechos de acampar, colchões. Os filhos, sobrinhos tinham que se acomodar no meio da bagunça. Ao se despedirem Seu Manoel o caseiro, o velho pescador que cuidava da casa de praia recomendaria: -Vá com Deus dona Pastora! Que Nosso Senhor Jesus Cristo e a Santíssima Trindade vá na companhia de todos vocês! A cafetã pilheriou: “-Danou-se Seu Manoel! O carro cheio desse jeito! Vaga só tem na mala." No outro dia, na central de velórios quatro caixões de defunto  estavam sendo velados. No final daquela tarde, noite tenebrosa a medida que iam sendo tirados os corpos, do carro totalmente destruído, estarrecido o guarda rodoviário comentava:
“-A mala, única parte que ficou intacta.”  

Fabio Campos  24 de março de 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário