Olhos de Pedra



Tivesse aquele dia amanhecido um pouco mais triste. As fachadas das casas quisesse dizer isso. O chão onde se pisava remetesse a sal, suor e sangue. Devia ter vivido mais, aqueles dias.  Sentir mais, as emoções. Ir ver o sol se por. O que não garantira que poderia ter sido diferente.  Pouco ou nada poderia mudar. Outro Cristo que a pouco tivesse sido levado por aquele caminho talvez. Os burricos, levando trabalho, iam subindo as ladeiras.  Danado de cansados de chicote chicoteados. Olhares furtivos, e cobranças. As casas subindo subiam, em cores de vistosos tecidos, em cortinas de janelas. Espaços entre as pedras do calçamento dificultava o caminhar. Damas de salto nem pensar. Pés descalços de escravos sim, botas de senhor não. Embora razoavelmente aceito. As árvores esticavam-se, lá detrás dos telhados, alaranjado. Em moldura verde vistoso modelando as casas. Quem sabe velha Vila Rica quisera ser quadro de Debret. O sino no alto da torre. Oco, não rouco, tocava um toque Barroco. A cada arco da capela anjos. Querubins a cada pilastra de arrimo, aos volveres das colunas. Inflamada abóbada de reluzente luz se fazia cravejada, de história. 


As caravanas de garimpeiros de instante a instante passavam. Subindo e descendo as ladeiras seguiam rumo, deus-dará. No mais das vezes, duas mulas, três escravos, um profissional do garimpo. Os homens que seguiam no paço finíssimas vestes trajavam, copiadas da requintada Europa. A feira na praça, de modo espontâneo nascera. Os mercadores, pouco a pouco chegando com suas mercadorias, especiarias. Tecidos, temperos, resinas, óleos e azeites, velas, fumo e folhas de papel. Um alquimista vendia tônicos, bálsamos e elixires para cura de muitos tipos de males. Camisa de Vênus feita de couro de bode, de tamanho único. Adaptar a anatomia diferenciada, não era a pior parte. O cheiro podia ser amenizado com óleo de cânfora ou pasta de Aloe vera. Um vendedor de artefatos pra combate, pólvoras e chumbo de diversas bitolas, armas, punhais, adagas, espadas, bacamartes e pistolas de aço forjado, em cabo de madeira trabalhado tinha que ficar num local estratégico, por conta dos saqueadores. A cada quinze dias uma trupe numa carroça, coberta de tecido grosso, em muito lembrava as carruagens do velho oeste. Três artistas, dois homens e uma mulher, apresentavam arremedo da Divina Comédia, de Dante. Fábulas de Isopo misturavam com outras alegorias circenses, malabarismo, equilibrismo, truques de mágicas. Personalidades conhecidíssimas da corte portuguesa caricaturados a todos divertindo. Ao término do espetáculo, a ínfima plateia não se furtaria de colaborar no momento que corria o caneco das gorjetas. O comércio livre em via pública ocorria às sextas-feiras. No início não pagavam impostos, mas não demoraria e instituída seria uma taxa pelo uso do passeio. Os jesuítas nos sermões e missas acabaram convencendo os vendilhões a virem a vila somente no sábado. Alegando pecado grave mercantilizar nas sextas-feiras que era dia santo de guarda. A manobra era pra quando viessem os protestantes seguidores de Lutero dificultar a implantação de seus dogmas uma vez que o costume da feira contrariava a lei judaica por não guardar o sábado.


Aos índios, entrar na vila, era o sábado, o único dia da semana permitido. Cachaça e fumo era o que adquiriam depois de venderem artefatos, iguarias. Colares, pulseiras, brincos, bancos mesinhas, porta objetos, bengalas, chicotes de couro de onça, peles curtidas de jaguatiricas, onças pintadas, lobos guarás, e artesanatos de toda espécie e variedade. As índias traziam  farinhas de mandioca e outros tubérculos, mel de abelha, além de ceras e resinas. Plantas medicinais, somente por encomenda. Obrigados eram a cobrirem suas vergonhas por conta dessa restrição foi a tanga inventada. Assim que chegavam tinham que ir primeiro na casa paroquial, pedir a benção aos missionários, ao padre José. Sempre levavam uma prenda pra doar a igreja, tatus, cotias, araras, periquitos, saguis, gato do mato, peba, tartarugas, patos selvagens, frutas, plantas exóticas e peixes. As desavenças ocorridas entre vendilhões brancos, e índios. Sempre entravam em plena feira. Os confrontos se tornaram cada vez mais frequentes. De ambos os lados ocorriam perdas e baixas. O que obrigaria o Visconde baixar um decreto: “A feira livre seria dividida em duas partes ao longo do mês. Dois sábados seriam pra comércio somente dos índios, e os outros dois dos mascates branco.” Com a vinda dos negros escravos e alforriados outra divisão teve que ser feita. O negro escravo vendia pano de linho, chamado de pano das costas, peças de argila cozida, bolos de angu e macaxeira. Com isso o índio ficou só com um sábado. De tal condição se instituiria o “Dia do índio” Pelo fato de cair no dia dezenove, no mês de abril, ficou sendo este seu dia.


Uma vez por mês, justo no dia da feira do índio, ou do negro havia uma execução em plena praça pública de um prisioneiro julgado condenado. A Corte tinha por lei que manter encarcerados causava prejuízo aos cofres da Coroa. Para tanto os réus condenados, num sábado era executado. De qual forma morreria naquele sábado? 21 de abril. Sabido era que três eram as formas de morrerem os condenados: Empolamento: o condenado tinha uma estaca enfiada no ânus, pouco a pouco até morrer; Decapitação; a cabeça do réu era colocada num cepo, e pelo algoz, com um único golpe de espada decepada do corpo; Enforcamento, o prisioneiro era suspenso do chão por uma corda e morria por asfixia. Que crime hediondo havia cometido  considerado tão bárbaro para ter que ser enforcado? E em seguida esquartejado? Que mal cometido pra tamanha atrocidade? Haveria justificativa plausível pelo esquartejamento, decapitação, mutilação exposição de suas entranhas em praça pública. Roubo, saque, arruaça, briga, furto, pirataria, grilagem, garimpagem, conspiração contra o império! Dane-se o império! A cor, a raça, o cargo que ocupava alferes era cargo de confiança. Ultrajada estava a Coorte!  


A hora das reuniões secretas era alternada para confundir os espiões. Tivessem ideia que o castigo para quem cometesse tal crime fosse de tamanha gravidade se permitiriam levar avante o intento pela dimensão do ideal a ser alcançado. O sonho coletivo, acalentado nos travesseiros com cheiro de alfazema. O sono vinha com a aurora deposto dentro duma nódoa de vinho derramado inebriantemente como fruto proibido chamado de liberdade. Tanta revolta e revolução causando. Não esperassem que houvesse uma adesão maciça do povo. Povo só é forte nunca. Juntos são fracos. Fosse um bando de Judas Escariotes com seus mesmos ideais de conseguir com luta o que almejavam. Os dias das assembleias de última hora mudado, os endereços sempre trocados para despistar os espiões. O ritual da espada. Abaixo a ordem de El Rei!


O que significava manter uma barba? Que valor tinha um fio de bigode? O que era um rosto jovial diante da morte? Nas masmorras não mais existe vida. Aquele que ali se encontra, morto está. Ainda que vivo, ali estando, morto estava. De companhia, o demônio que vinha inquerir: o que vais fazer quando chegares ao inferno? Indivíduo vil de tão ínfimo quilate, acaso achas que merece sentar ao lado de Belzebu? Agonia que nenhum ser, mantendo sã consciência, pudesse suportar. Será que não havia ninguém que lhes pudesse vir em socorro? Delírios, sofrimento, sede, aridez do ser, alucinações, visões, delírios. Gritos lancinantes, noite de trevas, no espírito nu. Ainda agora dava para ouvir, o dilacerar da alma, atravessando século, a carne vertendo suor e sangue.


Quanto ganhava um algoz pelo serviço de enforcamento? E o missionário que orava pela alma do réu? Com esquartejamento o valor dobrava? O carrasco tinha que esconder o rosto para não ser descriminado pelo serviço. Depois dali vivia de outros afazeres: garimpeiro, pai-do-mato, açougueiro. O sal conservou os pedaços do corpo por alguns dias, depois a carne apodreceu e o mau cheiro fez com que famílias do Largo da Lampadosa fossem pro campo, passar dias na casa de parentes, a fugir da fedentina. Depois da execução, não houve o tradicional aplausos.  Depois da execução, cortar a corda, função do carpinteiro que construíra o cadafalso.  O último desejo do alferes não foi atendido. A bandeira com o triângulo vermelho no fundo branco, jamais seria pendurada na trave. Árida trave na qual alçou voo, para ser olhos de pedras, de Minas.

Fabio Campos 25 de Abril de 2015 

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