LUIZA E CORINA (Ezequiel 23)



Era uma vez duas mulheres. Nascidas e crescidas em lugares distintos, bem dentro do sertão. Mulheres guerreiras, mulheres de fibras, mulheres da vida. Mulheres do mundo. Os meninos da copa de setenta conhecera Corina já velha. Os homens de meia idade no tempo da seca de setenta com ternura lembrariam de Corina, já Luiza pouco conheceram. 

Luiza, muitos nunca souberam, talvez fique sabendo agora, era a mãe de Elisabete. Corina, nesse tempo ia decaindo, pois era de muitos anos antes disso. Corina gostava dum lenço estampado na cabeça, que descia pela nuca. O lenço com uma franja colorida. Os brincos grandes e dourados, a deixava parecida com uma cigana, embora não fosse. Jamais expunha seu cabelo em público. Era uma cabocla de pele curtida, atarracada, nariz anduco. Filha de índios criada na aldeia. Nunca talvez tenha ido numa escola. Embora contasse umas histórias do tempo que estudava. Talvez mentisse. Se algo escrito lhe era entregue para que lesse, surtava. Pra disfarçar comentava sobre a caligrafia. Como achava bonita a leitura, do que quer que fosse. Fascinada ficava ao ver alguém, com os lábios, dando vida as palavras, tesouro escondido do qual sonhasse um dia desvendar. Era esse seu segredo. Alegando problema de vista e os muitos anos na idade safava-se pedindo pra alguém ler. Tinha vergonha de ser analfabeta.


Corina igual a samaritana que a buscar água no poço, era uma sofredora. Assim como aquela tivera vários maridos. Um dia aquela encontrou um galileu que profetizou sobre sua vida. Nas noites quentes e abafadas de novembro, na cozinha de dona Boninha e dona Lourdes duas irmãs, velhas solteironas. A mulher se danava a contar as histórias de sofrimento que passara na vida, de quando era pequena. Dizia que era filho de índios, que sua mãe morrera quando ela e seus dois irmãos ainda eram pequenos.  Achava que índio não tinha coração, porque seu pai não se importava se quer, se ela e os irmãos tinham fome. Era de cortar coração o que contava. Eram obrigados a ir pra roça, sem botar um nada no estômago. Ela e seus dois irmãos. Trabalhavam de sol a sol, no pesado, trabalho de gente grande. Pra não morrer de fome, com as mãos cavavam a raiz dos umbuzeiros pra comer. Mas não podiam invadir o território de outros índios, sob o sério risco de serem mortos. Além do que tinha deles que enterrava cacos de vidro no pé da raiz pra caso fossem cavar cortassem as mãos. Na época da colheita de feijão e milho, o que comia o dia inteiro era mandioca crua e tomavam água de barreiro. O álcool do tubérculo no estômago entorpecia a mente. A menina Corina acabava bêbada, e arriava não dando conta do aceiro da roça que tinha pra limpar. Isso provocava uma fúria incontrolável no seu pai que lhe batia com um chicote com tanta violência que lhe fazia as roupinhas em trapos, e o couro das costas ficava na carne viva. Dor sentia, mas não muita pois anestesiada estava pelo álcool da mandioca. Somente no dia seguinte com o sol batendo nas feridas acordava. E começava tudo de novo.


Tempos depois foram morar no arruado da Ribeira do Panema. A casa ficava no largo São Francisco. Era uma fileira de casinhas baixas num terreno baldio. Bem ali, no tempo que os meninos da copa de setenta nem eram nascidos, naquele terreno baldio havia um cemitério. Ficava por trás da igreja Sagrada Família. Igreja feita por Seu Zé Quirino, pro padre Bulhões rezar missa pra família Gonçalves. Os meninos da copa de setenta alcançaram ainda algumas catacumbas reviradas e não era comum encontrar ossada de caveira no meio do monturo. Teve uma vez que Rubinho de Seu Idelfonso brincando por ali achou e levou pra casa um fêmur e um crânio humano. Ao vê-lo com o sinistro, sua mãe disse um monte de impropérios e lamentos, e o fez devolver os ossos ao local donde havia encontrado. 


Lá embaixo descendo pro lado da estrada do aterro tinha um pé de castanhola muito grande cujo tronco enorme era da largura dum elefante, somente um menino, dentre todos os meninos da copa de setenta, era capaz de escalar aquele pé de castanhola: Tonho Pacaia. Ao lado do pé gigante ficava a casa de Luiza, a poucos metros do muro da cadeia. Onde os meninos fizeram um campinho de futebol. Toda vez que o jipe da polícia passava levantava uma poeira doida da estrada. Isso no verão porque no inverno era uma lama fria e densa que grudava as pastadas na bainha da calça, e formava um bolo debaixo do solado dos coturnos dos soldados que faziam-nos ainda mais irritados por conta disso. Pobre dos bêbados e ladrões de galinha quando iam presos, eram obrigados a tirar a lama do caminho, capinar o pátio da delegacia, cortar os pés de velame que cresciam ao lado dos degraus da cadeia pública, e limpar as botas dos soldados. E tinha Elias, um detento conhecido já, por suas investidas ao alheio, sempre pego pela polícia. Um dia foi obrigado a lavar o jipe, e carregar no carro de mão todo o entulho que ajuntou no entorno da caserna. Na hora de levar a última carrada de lixo, aproveitou um pequeno descuido e achou de fugir. Não iria muito longe, a guarnição foi em seu encalço. Graças a “Lucifér”, o cachorro pastor alemão do delegado, o alcançaram. Levou mordidas de todo tamanho. Mordidas que deixariam sérias sequelas. Elias quase perdeu a mão direita. Tantas mordidas, à altura do pulso levou do cão que quase aparta do antebraço. Com defeito no pulso Elias ganhou o apelido de “Mão de Onça” que odiava. E perseguia os meninos arteiros que o ralhava. A delegacia acabaria virando sua casa. Passou a ser contínuo do gabinete do delegado. Toda sorte de coisas fazia, pro batalhão e pros presos, levar e trazer recados, limpar uma fossa era tarefa que encarava com naturalidade.


A casinha feia, de taipa, as telhas sujas, quase caindo, que ficava por trás da cadeia era de Luiza. Difícil saber de que lado era a frente ou os fundos. Luiza era arredia, não gostava de Corina, mas tinha forte amizade com Nazinha. Gostava muito de plantas e tinha um monte de pequenas caqueiras rodeando todo o telhado baixo. Pés de crote, samambaias, copos de leite, espadas de São Jorge, comigo-ninguém-pode, roseiras e lírios. As hortaliças, coentro, tomateiro, cebolinha, hortelã da folha grande e da folha miúda talvez ficassem perto da cozinha. Ao por do sol, de vez em quando tinha um soldado, nu da cintura pra cima, sentado num tamborete, lá no terreiro dela. Enquanto ajuntava folhas e galhos secos com uma vassoura velha, Luiza ia fazendo sua reza silenciosa. Tinha uma historia velada, contada por poucos, que num tempo de uma dezena de anos antes, Luiza teria tido um caso com um homem chamado de Zezinho, que estava preso naquela cadeia, por ter matado outro, por ciúme dela. Luiza se arrancharia por ali pra ficar o mais próximo dele. Aguardava sua soltura. 


Elisabete pelos meninos, era chamada de “rainha Elisabete”.  A rainha do Reino Unido dos meninos da copa de setenta. Nunca foi coroada, nunca teve luvas brancas de cetim. Nem chapéu, nem boina na cabeça. Nunca andou de carruagem, nem jamais sonhou com um príncipe desencantado. Elisabete nem sabia que existiam rainhas de verdade, tinha-as como seres de um mundo encantado. No entanto, a mulher mundana era tão branca como a londrina. Mulher dos homens. Tinha o cabelo ‘de fogo’. Os olhos pequenos, a boca de Merilin Monroe. Gostar gostava de estar de baton. Elisabete era albina. Elisabete mulher do mundo. Ia pra praça e logo estava rodeada de meninos. Mulher devassa, ninfomaníaca. Pouco se importava com o julgamento alheio. Mesmo que as mulheres damas, da alta sociedade a olhassem com desprezo, não se importava. Apontada como rapariga pouco se importava com o título. Desvirginou muito menino do grupo escolar do padre Albuquerque. No começo por puro prazer. Aprendia junto com eles os segredos do amor. Seriam muitos, em muitas noites. Elisabete a rainha e seus súditos. Lá iam descendo a avenida Martins Vieira, na calada da noite, protegidos pelas copas das árvores que faziam sombra das luzes dos postes. Iam em busca de um lugar ermo. O departamento de obras contra a seca – Dnocs ficava no caminho. A noite tornava-se um local aprazível.


Corina, Elizabete mulheres feitas pro mundo. De ganho ganharam o mundo. Não se intimidaram. Abraçaram sua causa, amaram e beijaram sua causa. Descobririam o que era - a um só tempo - amar e odiar. Talvez tivessem consciência de que o mundo dava e tirava. Entraram na vida de muitos, e muitos dentro delas entraram. Desusadas, abusadas até virarem estátuas de gelo, e perecerem. Vagariam pelo universo, até que seus nomes fossem escritos na palma da mão de Deus. 


 “Veio a mim a palavra do Senhor dizendo: Filho do homem, houve duas mulheres, filhas de uma mesma mãe. Estas se prostituíram no Egito; prostituíram-se na sua mocidade, ali foram apertados os seus seios, e ali foram apalpados os seios da sua virgindade. E os seus nomes era Aolá, a mais velha, e Aolibá, sua irmã; e foram minhas, e tiveram filhos e filhas; e, quanto ao seus nomes, Samaria é Aolá, e Jerusalém é Aolibá. E prostituiu-se Aolá, sendo minha; e enamorou-se dos seus amantes, dos Assírios, seus vizinhos. Vestidos de azul, capitães e magistrados, todos cobiçáveis, cavaleiros montados a cavalo. Livro de Ezequiel Cap. 23 vs 1-13”


Fabio Campos, 13 de novembro de 2015

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