O QUE É ISSO? ("Don't Let Me Be Misundertood" - 1977)




Parecia um dia como outro qualquer. Realmente era um dia como outro qualquer. Nele cabia, todo aquele sol, quente, oblongo, sereno. Desencardindo pelo menos umas quatro, das cinco horas, da manhã. O homem com cara de iraquiano ficou mais de meia hora na porta da mesquita esperando. Cansando, sentou-se no batente. A espera foi ficando da cor do sol que vinha, e os vitrais reluziram luz e esquentaram tudo, por dentro, e por fora, reverberando luz por todos os poros. Finalmente o carro chegou. O taxista era um negro que falava rápido ( a minha vó diria: “-Esse bebeu água de chocalho.”). Parou mas não desligou o motor. Falava rápido, nervoso, como quem iam assaltar um banco. O iraquiano entrou, na parte de trás, pois já havia alguém no banco da frente. As falas animadas era pra ver se conseguiam espantar o sono. Ganharam a estrada. 

E veio o quadro na parede que dizia coisas de quase três décadas. Pra ser exato, vinte e nove anos se haviam passado desde quando se casaram. Lá estava aquele quadro, continuava, trazendo o passado. Chegou a conclusão que o passado ás vezes doía. Concluiria, no entanto que doera somente quando era o pretérito. No tempo presente a dor passada ficara como que adocicada. Lembraria de ter ido ao correio, enviar uma carta pra mãe. Procurasse na caixa de sapatos de guardar papeis velhos, tinha certeza que ainda estaria lá. Quando esteve na casa da mãe lá estava (a carta) na máquina de costura, resolveu guardá-la. Falava da casinha de taipa na praia. Engraçado, não falava da areia branca na praia, quente, de muito sol como aquele, muito menos do cheiro de peixe vindo do mar. Mesmo assim as lembranças vinham acompanhadas de tudo isso. Lembrava de ter subido num coqueiro, de ter ralado o abdômen na hora de descer. Ficou na carne viva.

A casinha branca coberta com palhas de coqueiro, à sombra do coqueiral, ficou guardada na lembrança. Aquele dia de tempestade, se abrigaram do vento, e da fúria do mar. E o medo, jamais esqueceria, o frio que sentiu na alma. O velho amigo sertanejo, de chapéu, bigode bem desenhado, que um dia foi lhe visitar achou tudo estranho. Nos dias que esteve ali ficou nervoso. Guardaria pra sempre a imagem dele, sentado num banco baixo, as pernas bem afastadas, amassando o fumo na palma das mãos pra fazer um cigarro. A expressão do seu rosto, dizendo que jamais moraria num lugar que vivesse com um monstro de água ameaçando o tempo todo invadir a casa. E do outro lado? Uma montanha enribada dum farol. Minha mãe Santíssima! Pra completar, Deus, de palmo em palmo, com gosto de gás abria as portas do céu. Nunca viu tanto aguaceiro na vida. E se de lá de cima (falava da montanha) viesse uma enxurrada? Aí não tinha mesmo como ninguém escapar! Os dias que passou ali, só ia dormir de porre. Só depois, de tomar muita cachaça. Morria de medo do mar.

O carro avançava, engolindo a faixa de betume. As serras, lá longe pareciam que ainda dormiam. O som do rádio vinha c'uma música cuja introdução um violão bem dedilhado trouxe lembranças de João, aquele cujo cognome era "de Deus". Dizia que, ouvindo aquela música do grupo Santa Esmeralda dirigiu de Santana ao Carié. O carro avançando e a música Don’t let me be misundertood. As lembranças levaram-nos ao sítio Lage Grande. Nos dias que o mundo ficava com cara de quaresma. A família da namorada, todo ano passava os dias grandes no sítio. Organizaram-se pra romaria. A namorada veria, pela primeira vez, suas pernas desnudas, pois só em ocasiões como aquela colocava uma bermuda. O irmão dela não conseguiu segurar um riso, as pernas que raramente viam o sol pareciam de outra pessoa. Além de secas, desproporcionais, e só agora se dava conta disso. O carro de boi avançando, cantando cantiga de pinho. A cachaça pegando fogo, tomada na boca da garrafa. A mão metida no bisáco de farinha catando um taco de preá, torrado no óleo. O amigo sertanejo, pai da namorada, na dianteira com a vara comprida de ferroar. O facão pendurado na cintura. Chapéu de couro amarrotado, cobrindo o cocuruto. Jamais esqueceria aquela cena. 

O sol vinha que veio. No início feito manga doce. Depois abusou-se de servir de mote pra poesia, aí o peste esquentou as orelhas. Empinando virou-se numa serpente, pareceu ter prometido a si mesmo que torraria a tudo, e a todos. Era esperar pra ver. Só não duvidasse. O suor pingando na areia quente, dizendo: ponto final, ponto final. Os pés da cor do chão. A poeira, feito meias vestiu as alpercatas. Depois que tirasse ficaria outra, no bronzeado das marcas das tiras. Dormir no alpendre, sentindo a brisa morna da noite também foi inesquecível. Por uma nesga flertaria a noite escura. Tão escura, que as estrelas tinham preguiça de brilhar. O cansaço era tanto que o sono vinha logo, sem dar direito ao corpo a estranhar a dormida diferente. Aqueles cheiros todos misturados, palma cortada, catingueira quebrada, sabão da terra, couro cru dum gibão velho, o bodum do sedém duma égua, a inhaca dum jumento, o cheiro de bosta de boi, E os olhos pesados, pesando ainda mais, reviravam sem querer se entregar ao sono. Finalmente se renderiam ao hálito morno e adoçado do boi. Entre um e outro sopro forte pelas ventas, moendo e remoendo capim.

Aquelas nuvens no céu, e vieram outras lembranças mais. O aguaceiro na vila obrigava que a ida a padaria fosse debaixo duma sobrinha. E tudo estava azul. Uma chuva azul molhando a tarde. Água nos azulejos das casas antigas. Caindo das bicas enchendo de azul os tonéis. As lâmpadas dos postes em dias como aqueles acendiam mais cedo. No meio da rua estreita, desigual. Lá ia a menina comprar pão com sua sombrinha da cor duma fatia de mamão. O homem da bicicleta, parcimonioso no pedalar. Também um menino de bicicleta, afoito, achou de passar o homem, o pneu foi pra dentro da sarjeta, melhor não ter feito isso. Havia um buraco coberto pela água. A queda feia foi inevitável. Caiu na calçada no momento que o homem da casa da praia ia passando, foram ambos pro chão. O menino ganhou arranhões, o homem o pé machucado. Ficou de cama. O padre foi a sua casa saber por que não foi ao compromisso. Sentado na cama se explicou. Tomaram chá com pão com manteiga torrado. A balsa apitava solene, cobrava somente a travessia dos carros, pedestres passavam de graça o rio, em estado de graça. O motor fazendo aquele barulho de teco-teco, a chaminé soltando fumaça negra. Parecia um crustáceo de aço, gigante, que fumava enquanto boiava até a outra margem. Nas últimas sextas-feiras de cada mês tinha que ir a cidade fazer feira. O dinheiro separado com cuidado, enrolado num saco plástico, guardado no fundo da carteira. A igreja imponente, majestosa. Olhando pro rio Manguaba. O sino calado, esperando as horas completarem os minutos pra se anunciar. Tempo perdido, o homem do autofalante não tendo muito o que dizer ficava dando as horas. As bancas de roupas de chitas coloridas, as frutas vistosas empilhadas no calçamento. “-Moço essa laranja é doce?” “-Não, é laranja”. “-Bem feito! Pra quem faz pergunta boba.” O vendedor de picolé parecia um menino velho, que vendia porque gostava do produto. E não estranhasse se caso não vendesse chupasse tudinho, ele mesmo. O caminho da volta era de caminhão. As mulheres por causa da poeira amarravam lenços na cabeça. Os homens tirariam os chapéus cuidando que não voassem. A paisagem era coqueiro correndo na praia, brincando de pega com o sol. E a água do mar ao meio dia parecia vidro derretido se espatifando na areia. Como um copo de absinto caindo, lentamente caindo. Embriagando quem estivesse ao alcance de seus olhos, do seu cheiro. Teve uma feira de fim de ano, cujo dinheiro extra, renderia a compra dum colchão novo, e um pequeno armário. Uma gaveta pra colocar os garfos e facas, na outra os panos de prato. Se acabou a dormida de esteira no chão duro. A rapadura quebrava, em pedaços, por conta das formigas, ia pra dentro dum vidro com tampa.

O homem de chapéu, sem saber o porquê, ali dentro do carro, lembrou-se do porteiro. Aquela hora estaria abrindo o portão pros estudantes. Tantas daquelas manhãs os dois testemunharam. O porteiro era poeta. E isto era muito bom. Confidenciou ao homem de chapéu que ia publicar um livro, de poesias. Já o havia feito. Perguntou se tinha tempo para dar uma olhada. Disse que naquele exato momento não, mas prometeu que qualquer hora veria sua obra. Diria o quão achou interessante, a cada estrofe uma adivinha. Ficara legal. Ele próprio leu uma demonstração. “-Uma moça de cinturinha bem feita/com seis irmãs no braço/que choram diferente/por uma boca só/ Viola.”

Lembraria ainda das vezes que o viu no quiosque sentado a uma mesa, na companhia das músicas de outros tempos, voando baixo, indo mansa, por debaixo da marquise. E as cores se movimentavam, ora devagar, ora alucinadamente. E nunca mais aquele sol traria aqueles outros tempos. Muito embora tentasse. A menina filha do promotor de justiça, cresceu, e agora promovia terapia de grupo. No jardim cultivava flores, incensos e música do tempo de sua ( e de muitas outras) juventude. A sacada era a mesma de outrora na casa da menina psicóloga, talvez também no granito do quiosque, onde sentava o poeta em dia de feira. Os meninos agora crescidos e velhos brincavam de sentar em cadeiras de plástico de polipropileno a rirem do passado. Vestiam camisas de poliéster, nylon e só dez por cento de algodão, com estampas bem maneiras. A calça jeans e o tênis pareciam de velhos tempos. Só não era mais boca de sino, nem os sapatos cavalo de aço. Os cabelos ao estilo dos “Bee Gees” agora escassos, pratearam.

A Bodega de Seu Ozéias, o Pic-Nic lanches de Seu João Salgado. A casa de dona Espercina, a casa de Seu Manoel Constantino, a casa da professora Narair, o Cine Glória. Tudo mudado. Cine Glória que tristemente serrou suas portas de grades sanfonas. Por uma brecha deixaria passar os moleques a brincar no enorme salão vazio. Depois viraria o departamento de Abastecimento - Cobal. Ainda antes seria reaberto pra abrigar a Guarda Mirim. Os bravos (pequenos) guardiães da cidade. Trajados numa farda verde, um boné na cabeça, sapatos Vulcabrás, portavam respeitáveis cassetetes. O lema era o mesmo da bandeira nacional: “Ordem e Progresso”. E caso prendiam um delinquente imitavam no trato, o mesmo, de choque, dispensado pelos soldados no auge do período militar no poder.

Marcos Virgulino sofreu feito a gota, na unha da guarda Mirim, mas também descontava nos pivetes do Grupo Escolar do padre Albuquerque. Uma vez João da Toca (saudade) se enrolou no telequete com Virgulino a briga foi feia. João saiu de olho roxo. Tempo, tempo, santificado sois. Tempo passado que o calendário se encarregaria de levar pra trás. Aí vem o porteiro, poeta. Uma viagem a Garanhuns, se inventando de trazer tudo de volta.

Fabio Campos, 21 de novembro de 2015 


P.S. O autor incluiu, neste Conto, versos do livreto: “O que é? O que é?[nov2015]” Do poeta santanense Vanildo José Tavares.

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