LUZ, TREVAS, LUZES - Quase Um Conto de Natal



Natal nada poderia dizer, não fossem os objetos, e os homens. Os homens conversavam sentados na porta do mercado da esquina. Talvez não lembrassem que era natal. Do que falavam? Futricavam das nuvens que noutro dia passaram, e as que passavam então. Lembravam de velhos colegas que morreram. Dos que não conseguiram emplacar um ano mais. De certo de um menino que nascera num longínquo povoado quase desconhecido, esquecido. Talvez nem soubessem. Do pequeno vilarejo às vezes falavam. Onde ficava? Isso sabia. Tinha deles que era de lá.

Luz. Pra chegar lá era preciso domar o touro de fogo que campeava no firmamento. Pra chegar lá era preciso vencer a serpente de barro batido, que circundava a montanha gigante. Uma hora boa de caminhada, se não parasse pra nada. Melhor ir de manhã cedo, ou de tardinha pra não sofrer debaixo do bisonte abrasador de Deus. E lá estava a vila, com suas casinhas anãs, conversando umas com as outras. Final da madrugada, início daquela manhã, na penúltima casa da rua, comadre Antônia merendeira da cantina do grupo escolar, teve um bebê. Dera a luz uma menina que receberia o nome de Laísa. Se fosse menino se chamaria João. E seria dos que teriam vigor nos braços fortes e coragem pra carregar um balaio de pão na cabeça. Sendo menina seria prendada arranjaria bom marido pra juntos encherem a casa materna de netos. Criaria galinhas poedeiras, e todo ano sevaria um porco pro natal. E seus tios se animariam comentar. Pondo escárnio e tudo ficaria bem mais fácil. Com ênfase falariam da artrose que entrevava as vontades fosse verão ou inverno. E parecia que tudo perdia o gosto. Maldita falta de animosidade que aleijava até pensamentos. 

Trevas. A estupefação diante da obviedade de todo vivente, a morte. Tal qual o nascimento. Por que a morte não era aceita com naturalidade? Morrera João Felix o fazedor de arreios da vila. Era assim, o cachimbo da alegria incontida incensava a casa de comadre Antônia enquanto o bafo morno do chá da tristeza mornamente descia pela calçada, pela rua, em frente a casa de mestre João. Serelepe matina. Sisuda vespertina. Cavalos mantinham-se sérios, presos pelas rédeas a uma estaca na porta do salão fechado. Um retângulo negro na soleira dizia: Luto. Fantasmas de gente vagavam pelas calçadas. Aguardariam a saída do cortejo. Na palma da mão direita fechada compadre Nildo mantinha um isqueiro “rala-dedo”. Quem pegasse emprestado sentiria nele o calor do seu corpo. Os dedos do defunto rijos, frios, sem vida retinha ainda o cheiro de tabaco. A ponta do nariz severamente apontando pras telhas. Os olhos e os lábios serrados sem mais nada querer dizer, nada. O chapéu de massa azul profundo que tanto falava na cabeça, no cabide abandonado, mais nada dizia. Não importava, sempre pronto pra congelar todo olhar que pra ele acorresse. Sabia o que pensava quem olhasse pra ele. A sarjeta desigual, os bancos desiguais. Olhares desunidos. Palavras desencontradas, desconexas. Mal saiam da boca voariam errantes, cambaleantes. Bastariam verem-se soltas, esbarrariam nas paredes, cairiam no chão sujo, grudento de pétalas de flores pisoteadas. Ninguém as queria, inúteis, desfalecidas sobre o féretro. Quando o cortejo saísse duma trovoada ia carecer o mundo pra lavar a alma da rua. O negro automóvel da funerária cúmplice do crime cometido pelo vento que derrubou o único azul que restava. O único Cristo que havia ficaria sozinho com seu olhar indefinido de papel de feltro. A única vela que ainda restava acesa se apagou. O tonel encostado no poste lá na calçada espreitava delinquentemente, sujo, esmolambado, inconveniente. Olhos vermelhos rosto banhado de lágrimas, pranto dos familiares, pranto. A hora mais dolorida, a hora de por a tampa do caixão, a hora da saída. Desespero, choro incontido. Comovente.

Luz. De novo outra manhãzinha vinha pelo meio rua. Na rua tinha um homem. Um homem calado. Pensamentoso não se dava conta que era paisagem. Perdia o amanhecer, ruminando pensamentos. O dia gritava silenciosamente sua sinfonia, pobre homem nada escutava. Seus olhos cegos não alcançavam o canto dos pássaros, solitário varria a rua de manhãzinha. Juntava um pouco aqui e acolá depois ia com a pá, apanhava. A tarde se encheria de redemoinhos. E viria o caminhão e pegaria os lixos das casas. O homem do caminhão de óculos escuros a qualquer hora do dia, ninguém jamais vira seus olhos. Nem no dia do natal quando todos se cumprimentassem cumprimentariam um par de lentes escuras. Caso sorrisse de certo teria um dente de ouro. As escolas em clima de final de ano. Pondo os meninos a encherem as ruas de zoada boa, alegria farta. Correria de sapatos plaf-plaf nos corredores, no calçamento. Interessante as nuvens passageiras se descendo a esquerda do por do sol. Donde viria tal hidrogenia? Teria sido dum lago velho onde cavalos pastavam na relva onde um vento soprava nas folhas dos pés de manga.

Trevas. O homem que parecia um jangadeiro encontrou charque e bacalhau no tonel de lixo da calçada. Cheirou pareceu ter gostado do que seu olfato percebeu. Estava garantida a ceia de natal. Uma caixa de fósforos, uma garrafa de água mineral com dois dedos de um amarelo amendoado. Óleo de soja? Gasolina? O suficiente pra destruir o mundo, destruir uma fome, destruir uma vida. Dormiria num pedaço de papelão de uma caixa de fogão. Se cobriria com um saco plástico. Ao lado uma caixa com uma lata cheia de cachaça. A luz da marquise tinha besouros teimosamente batendo contra o bulbo. 

Luzes. Havia a lembrança de um fim de ano que todas as crianças do grupo do Padre Albuquerque foram ao clube festejar. Distribuíram guaraná nuns copos de papel de aniversário colorido, e uma fatia de bolo num guardanapo. Alguém queria briga e houve uma encrenca. Alguém tentaria bater no menino de camisa branca, sapatos, meias marrom, e calção de botões na braguilha. O menino não entendia porque aquela raiva. O irmão do outro pra mostrar quem mandava derrubou-o ao chão. Ruim não fora cair, muito pior era sentir-se indefeso. O menino não queria agressão só era incompreendido. Como fora de outra vez quando Lucas um colega negro lhe chamou pra briga e não topou por vários motivos. Primeiro como brigaria se não tinha raiva do outro. Acabaria não revidando os socos que porventura o outro lhe desferisse. E os meninos que jamais sabiam o que era uma lapinha caminhavam por entre os partidos de cana. O vermelho que chegava ali, de certo que não era o do Noel, era do carro de bombeiro. Os piscas-piscas que vez outra chegava até lá não eram de árvores de natal. Era de viaturas da polícia, as guirlandas que ia naquele lugar não enfeitavam as soleiras das portas, enfeitavam túmulos de cadáveres cujos retratos desbotados não refletiam mais a realidade. A manjedoura nunca teve feno, nem capim elefante. Teve sal. Teve formol, e estava perfurada de balas. E o sangue fazia desenhos enquanto descia ferindo mortalmente o calçamento. 

Natal nada poderia dizer. Talvez fosse feito de objetos, e de homens. Os homens sentados na porta do mercado da esquina conversavam em torno dum garrafão de vinho. Talvez festejassem o natal. Do que falavam? Do calorão que fizera o dia todo, a semana toda. Melhor dizendo o mês inteiro. As nuvens que passavam, já não eram as mesmas. Sempre a formarem outros desenhos assim dizia minha mãe. Lembravam velhos colegas que morreram. De certo de um menino que nascera num longínquo povoado quase desconhecido, esquecido talvez não lembrasse mais. Do pequeno vilarejo às vezes falavam. Onde ficava? Que filhos meus completam ano esse mês? Precisava que alguém a auxiliasse.

De certo que quando João Felix chegasse no céu lá vinha Jesus ao seu encontro, a puxar conversa: “-João amigo velho... Quer dizer então que você foi que fez aquele chicote com que os soldados tanto bateram em minhas costas? E João sorriso maroto diria: “-Eu?... Fui eu não Senhor! Eu lembro que o padre da igreja uma vez me pediu pra fazer um par de alpercatas pro senhor. Ele botou numa imagem que saiu na semana santa. Lembra?” Nisso vem chegando o xará do nosso amigo. Barbudo, a barba já branca, cajado na mão. Vestido numa pele de cordeiro, completou: “-Pois foi. Justo àquela que não sou digno de desatar as correias. Até hoje.”

Fabio Campos, 21 de Dezembro de 2015.

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