QUEDAS VENIAIS [My Mistake - Pholhas - 1977]


Nem se dobrara direito ainda o dia, por debaixo do negro cobertor. Acabara de se deitar sob o peso da própria fadiga às primeiras horas de trevas a rua. Se bem que nem dava pra considerar aquele rabo de vila como sendo uma rua. Não passava de quatro ou cinco casas. Feito peças de dominó postas de pé. Uma arcada de dente falhada ou espiga de milho bonecada que o sertão brabo deixara de vingar.

Ia um homem caminhando. A pouca luz obrigava os instintos, aguçar outros sentidos, além da visão. Bom seria que houvesse escuridão apenas. Para além dos postes apagados, havia a escuridão das almas. O farfalhar das asas dos demônios. Caminhar no escuro só não é problema pra quem já conhece o terreno onde se pisa. E o homem não demonstrava que conhecia ali. Aliás, toda a cidade pra ele, era estranha. Porem já se acostumara a andar debaixo das trevas ainda que com muito calor. E tão abafado estava o tempo que um músculo, uma folha sequer do pé de figo mexia. Uma rua vazia, uma casa feia, muitas casas feias. De longe algumas coisas feias acabam virando poesia. Tão lá longe, que nem dava pra ver a tristeza que havia. Apenas se imaginava que muito triste estavam porque era quase natal e não havia como antigamente árvore pra montar, nem piscas-piscas de luzes coloridas. Uma lua cheia, de histórias pra contar, como que choramingando. O homem de corpo, ia sozinho embora testemunhasse a tudo não queria escutar a ninguém. Bem baixinho disse pra si, algo que não queria nem que Deus escutasse, porque o que ia fazer talvez não fosse bom. Disse bem assim, “É tempo de ir.” E sem dizer pra onde, foi. Desceu uma ribanceira seguiu por um terreno baldio.

As meninas que jamais gostavam de serem chamadas de menina já tinham se ido. Era quase noite, suas almas porem permaneceram brincando na praça pequenina, tão pequena que mal cabia seus pés descalços, nos resvalos caiam, e riam de suas quedas. As mães sentadas nos bancos diriam pra terem cuidado, e que lavassem os pés antes de se deitar. Dava pra ouvir muito longe os acordes de uma banda de música, o trompete reinando astuto, os demais instrumentos no seu encalço. O cantor empolgado atirava graves que voavam e, ao passar por entre as folhas do pé de mamão, que dera frutos pros pais das meninas, destoavam ao vento. Os olhos dos gatos que um dia o pai os alimentou ao pé da mesa, com as sobras de sua janta, agora vagavam nas telhas de argila coberta de limo e calor refratário. No passado, ainda novas eram tão vermelhas. O primo de olhos verdes que fora pro Mato Grosso retornou, vinte anos mais velhos. Os olhos continuavam os mesmos. Foi por eles que o reconheceu, pelos olhos. Agora calvo, os longos cabelos e a barba ficaram brancos. Tinha deixado de fumar. Não jogava mais bola como jogava na areia do Panema. Quando tinha oportunidade ainda montava cavalo. Será que lembrava do incêndio no paiol da casa da barragem? 

Com muita nitidez, e com todo pavor, do passado veio o dia do incêndio. Por mais longe que estivesse aquele dia, ainda conseguia encher-se de terror. Os sapos e cobras tentando fugir como podiam, os que não conseguiam crepitavam nas línguas vorazes de fogo. Saguis e cassácos queimados vivos virando horrendos bibelôs, perfeitos pra enfeitar antessala dos infernos. O azeite da mamona ardendo, enchiam os olhos e o nariz de fumaça. Uns vidros com água, álcool e formol na prancha da parede estouravam antes mesmo de serem atingidos pelo fogo. Seu Zé do Chapéu cedo da tarde amarrava o cavalo ali pra pastar. O cavalo de seu Zé do chapéu, salvo pelo próprio fogo que queimou a corda livrando-o do laço da morte. Também a parelha de boi de seu Andrade que desde manhã pisoteava e comia o capim seco agora quase morria queimado, não fosse o negrinho que Seu Andrade criava a os acudisse. Os passarinhos aturdidos buscavam outros abrigos, encandeando-se pela luz do fogo intenso acabavam batendo no muro do grupo e caiam na passarela, os gatos aproveitavam para caçarem sua janta. Os fundos da casa de seu Antônio nunca vira tanto clarão e quentura em suas paredes bolorentas. O cachorro no quintal, acorrentado ao pé de limão pressentia o perigo latia pro fogo, como se com isso conseguisse afugentá-lo. Conseguiu somente ficar rouco e um ferimento da coleira no pescoço. 

O velho Macambira, já bêbado, vinha da roça, ao ter aquela visão atirou a enxada no chão, dançando agradeceu a Deus, pelo fogo pois o tinha como algo divino, e muito poderoso, desconsiderando totalmente o lado destrutivo. A fumaça benfazeja foi aos quartos de dormir acordou os mosquitos, a beijar lençóis e forros com seu beijo sujo. A menina que estava na cama chorou porque tinha medo de fogo daquele tamanho. De fogo pequeno que a vó fazia detrás de casa não tinha. Medo mesmo de trovão, relâmpago e do “velho do saco”. Lembrou do dia abafado que havia arrancado um dente. Doía muito e doeu mais ainda quando começou a trovejar e relampear. O coração disparado, de sangue encheu um lençol de cama. Paula perigosa, mesmo com o dente arrancado foi andar a cavalo foi bater na roça. Foi só vir à boca da noite viu estrelas. Roger deu um pedaço de fumo pra colocar na gengiva aberta pra ver se estancava a sangria. Ao pé da cama o penico de estanho branquinho, da borda preta, vermelhou. 

O menino traquino da última casa da rua banguela, rua dos doidos, aproveitou o alarido do fogo, invadiu a casa da vizinha, roubou o rádio, a lanterna, a faca peixeira e a bicicleta. Comeu salame e o queijo tirou da geladeira deixou encima da mesa. Pegou uma calça, jeans, um par de tênis e uma camisa. Tomou banho no quintal sobre a mureta onde as meninas se banhavam, a toalha molhada largou sobre as calcinhas das meninas. Tempos atrás quando a água escasseou na cidade com umas babonas de plástico na estação rodoviária ia buscar, fazendo o caminho até alta madrugada. Pegar água num carrinho de mão toda noite pra lavar roupas, beber, tomar banho e preparar comida. As meninas e o menino iam pra escola de bicicleta. Da porta Vânia cumprimentava com um bom dia. Foi um ano tão seco aquele que até o riacho do bode, o lago artificial feito pelo governo, ameaçou secar. Seu Zé Rosa, o vigia foi instruído a proibir a pesca de tarrafas e litros que pegavam pitu. Somente a pesca de vara e anzol estava permitido. Mesmo assim já existiam os ímpios que além de descumprirem as ordens acendiam pequenas fogueiras que provocavam incêndios. Teve um dia que ao voltarem do Gravatá cozinharam uma dúzia de ovos de pata e comeram ali mesmo. Uma cobra cascavel não se intimidando com nada continuou devorando um sapo enorme. As poças d’água na estrada depois da trovoada faziam medo porque parecia assombração, Na descida da Serra da Camonga de bicicleta, um deles ficou sem freio. Quase se esbagaçava em cima dum arame. Socorrido que foi pelos meninos carvoeiros que vinham da rua com suas mulas. 

A noite avançava e mais claro ia ficando o enigma do estrangeiro. O homem pediu de comer numa casa, ali perguntaram seu nome. Atendia pelo nome de James, viera de Jaboatão dos Guararapes a pé. Longa jornada do litoral pernambucano pro sertão de Alagoas. Ficou vagando pela Serra dos Macacos, e surgiu um foco de incêndio lá, e puseram a culpa nele. Na Lagoa do Junco também esteve, e novo foco de incêndio na calada da noite iniciada, tanto avançou que ameaçou as casas. De novo disseram ter visto um homem mal encarado andando por ali. Na encosta do morro do Pelado em pleno meio dia o fogaréu comeu solto. Um doido andou passando por aqui, disseram. Faltava a prova que realmente era James.
  
James era de pouca conversa, doutora Jaqueline no entanto conseguiu arrancar dele muitas coisas. Era alcoólatra tinha passado pelo menos umas três vezes pela Centro de reabilitação “Casa de Jericó” em Marechal Deodoro. Na última vez que passou lá, ficou dois meses, e conseguiu fugir. De que fugia? Das vozes que ouvia. Tinha esperança que nessas caminhadas por onde ia, um dia encontrar a paz, era o que tanto procurava. 

Estava feliz agora, ia passar o natal junto com nove novos amigos, que conseguira no fim daquele dia. Tinha muito o que ouvir porque contar não gostava. A uma última pergunta da psicóloga sobre se não se cansava de andar tanto a pé. Diria que andar não cansava. Cansava fechar os olhos ver trevas, ouvir vozes. A escuridão dos olhos fechados dava-lhe medo, e tinha medo de dormir, de escuridão. Verãozão lá fora, maior calorão, e os braços frenéticos. Aquele frio, de onde vinha? Precisava se aquecer.

Fabio Campos 07 de dezembro de 2015

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