Olhos de Pedra



Tivesse aquele dia amanhecido um pouco mais triste. As fachadas das casas quisesse dizer isso. O chão onde se pisava remetesse a sal, suor e sangue. Devia ter vivido mais, aqueles dias.  Sentir mais, as emoções. Ir ver o sol se por. O que não garantira que poderia ter sido diferente.  Pouco ou nada poderia mudar. Outro Cristo que a pouco tivesse sido levado por aquele caminho talvez. Os burricos, levando trabalho, iam subindo as ladeiras.  Danado de cansados de chicote chicoteados. Olhares furtivos, e cobranças. As casas subindo subiam, em cores de vistosos tecidos, em cortinas de janelas. Espaços entre as pedras do calçamento dificultava o caminhar. Damas de salto nem pensar. Pés descalços de escravos sim, botas de senhor não. Embora razoavelmente aceito. As árvores esticavam-se, lá detrás dos telhados, alaranjado. Em moldura verde vistoso modelando as casas. Quem sabe velha Vila Rica quisera ser quadro de Debret. O sino no alto da torre. Oco, não rouco, tocava um toque Barroco. A cada arco da capela anjos. Querubins a cada pilastra de arrimo, aos volveres das colunas. Inflamada abóbada de reluzente luz se fazia cravejada, de história. 


As caravanas de garimpeiros de instante a instante passavam. Subindo e descendo as ladeiras seguiam rumo, deus-dará. No mais das vezes, duas mulas, três escravos, um profissional do garimpo. Os homens que seguiam no paço finíssimas vestes trajavam, copiadas da requintada Europa. A feira na praça, de modo espontâneo nascera. Os mercadores, pouco a pouco chegando com suas mercadorias, especiarias. Tecidos, temperos, resinas, óleos e azeites, velas, fumo e folhas de papel. Um alquimista vendia tônicos, bálsamos e elixires para cura de muitos tipos de males. Camisa de Vênus feita de couro de bode, de tamanho único. Adaptar a anatomia diferenciada, não era a pior parte. O cheiro podia ser amenizado com óleo de cânfora ou pasta de Aloe vera. Um vendedor de artefatos pra combate, pólvoras e chumbo de diversas bitolas, armas, punhais, adagas, espadas, bacamartes e pistolas de aço forjado, em cabo de madeira trabalhado tinha que ficar num local estratégico, por conta dos saqueadores. A cada quinze dias uma trupe numa carroça, coberta de tecido grosso, em muito lembrava as carruagens do velho oeste. Três artistas, dois homens e uma mulher, apresentavam arremedo da Divina Comédia, de Dante. Fábulas de Isopo misturavam com outras alegorias circenses, malabarismo, equilibrismo, truques de mágicas. Personalidades conhecidíssimas da corte portuguesa caricaturados a todos divertindo. Ao término do espetáculo, a ínfima plateia não se furtaria de colaborar no momento que corria o caneco das gorjetas. O comércio livre em via pública ocorria às sextas-feiras. No início não pagavam impostos, mas não demoraria e instituída seria uma taxa pelo uso do passeio. Os jesuítas nos sermões e missas acabaram convencendo os vendilhões a virem a vila somente no sábado. Alegando pecado grave mercantilizar nas sextas-feiras que era dia santo de guarda. A manobra era pra quando viessem os protestantes seguidores de Lutero dificultar a implantação de seus dogmas uma vez que o costume da feira contrariava a lei judaica por não guardar o sábado.


Aos índios, entrar na vila, era o sábado, o único dia da semana permitido. Cachaça e fumo era o que adquiriam depois de venderem artefatos, iguarias. Colares, pulseiras, brincos, bancos mesinhas, porta objetos, bengalas, chicotes de couro de onça, peles curtidas de jaguatiricas, onças pintadas, lobos guarás, e artesanatos de toda espécie e variedade. As índias traziam  farinhas de mandioca e outros tubérculos, mel de abelha, além de ceras e resinas. Plantas medicinais, somente por encomenda. Obrigados eram a cobrirem suas vergonhas por conta dessa restrição foi a tanga inventada. Assim que chegavam tinham que ir primeiro na casa paroquial, pedir a benção aos missionários, ao padre José. Sempre levavam uma prenda pra doar a igreja, tatus, cotias, araras, periquitos, saguis, gato do mato, peba, tartarugas, patos selvagens, frutas, plantas exóticas e peixes. As desavenças ocorridas entre vendilhões brancos, e índios. Sempre entravam em plena feira. Os confrontos se tornaram cada vez mais frequentes. De ambos os lados ocorriam perdas e baixas. O que obrigaria o Visconde baixar um decreto: “A feira livre seria dividida em duas partes ao longo do mês. Dois sábados seriam pra comércio somente dos índios, e os outros dois dos mascates branco.” Com a vinda dos negros escravos e alforriados outra divisão teve que ser feita. O negro escravo vendia pano de linho, chamado de pano das costas, peças de argila cozida, bolos de angu e macaxeira. Com isso o índio ficou só com um sábado. De tal condição se instituiria o “Dia do índio” Pelo fato de cair no dia dezenove, no mês de abril, ficou sendo este seu dia.


Uma vez por mês, justo no dia da feira do índio, ou do negro havia uma execução em plena praça pública de um prisioneiro julgado condenado. A Corte tinha por lei que manter encarcerados causava prejuízo aos cofres da Coroa. Para tanto os réus condenados, num sábado era executado. De qual forma morreria naquele sábado? 21 de abril. Sabido era que três eram as formas de morrerem os condenados: Empolamento: o condenado tinha uma estaca enfiada no ânus, pouco a pouco até morrer; Decapitação; a cabeça do réu era colocada num cepo, e pelo algoz, com um único golpe de espada decepada do corpo; Enforcamento, o prisioneiro era suspenso do chão por uma corda e morria por asfixia. Que crime hediondo havia cometido  considerado tão bárbaro para ter que ser enforcado? E em seguida esquartejado? Que mal cometido pra tamanha atrocidade? Haveria justificativa plausível pelo esquartejamento, decapitação, mutilação exposição de suas entranhas em praça pública. Roubo, saque, arruaça, briga, furto, pirataria, grilagem, garimpagem, conspiração contra o império! Dane-se o império! A cor, a raça, o cargo que ocupava alferes era cargo de confiança. Ultrajada estava a Coorte!  


A hora das reuniões secretas era alternada para confundir os espiões. Tivessem ideia que o castigo para quem cometesse tal crime fosse de tamanha gravidade se permitiriam levar avante o intento pela dimensão do ideal a ser alcançado. O sonho coletivo, acalentado nos travesseiros com cheiro de alfazema. O sono vinha com a aurora deposto dentro duma nódoa de vinho derramado inebriantemente como fruto proibido chamado de liberdade. Tanta revolta e revolução causando. Não esperassem que houvesse uma adesão maciça do povo. Povo só é forte nunca. Juntos são fracos. Fosse um bando de Judas Escariotes com seus mesmos ideais de conseguir com luta o que almejavam. Os dias das assembleias de última hora mudado, os endereços sempre trocados para despistar os espiões. O ritual da espada. Abaixo a ordem de El Rei!


O que significava manter uma barba? Que valor tinha um fio de bigode? O que era um rosto jovial diante da morte? Nas masmorras não mais existe vida. Aquele que ali se encontra, morto está. Ainda que vivo, ali estando, morto estava. De companhia, o demônio que vinha inquerir: o que vais fazer quando chegares ao inferno? Indivíduo vil de tão ínfimo quilate, acaso achas que merece sentar ao lado de Belzebu? Agonia que nenhum ser, mantendo sã consciência, pudesse suportar. Será que não havia ninguém que lhes pudesse vir em socorro? Delírios, sofrimento, sede, aridez do ser, alucinações, visões, delírios. Gritos lancinantes, noite de trevas, no espírito nu. Ainda agora dava para ouvir, o dilacerar da alma, atravessando século, a carne vertendo suor e sangue.


Quanto ganhava um algoz pelo serviço de enforcamento? E o missionário que orava pela alma do réu? Com esquartejamento o valor dobrava? O carrasco tinha que esconder o rosto para não ser descriminado pelo serviço. Depois dali vivia de outros afazeres: garimpeiro, pai-do-mato, açougueiro. O sal conservou os pedaços do corpo por alguns dias, depois a carne apodreceu e o mau cheiro fez com que famílias do Largo da Lampadosa fossem pro campo, passar dias na casa de parentes, a fugir da fedentina. Depois da execução, não houve o tradicional aplausos.  Depois da execução, cortar a corda, função do carpinteiro que construíra o cadafalso.  O último desejo do alferes não foi atendido. A bandeira com o triângulo vermelho no fundo branco, jamais seria pendurada na trave. Árida trave na qual alçou voo, para ser olhos de pedras, de Minas.

Fabio Campos 25 de Abril de 2015 

Juvenal e Soberano



Juvenal era assim, um homem montado a cavalo. Porque tem pessoas, que nos vem. E lembramos pelo que faziam no mais da vida. Deles que nem sabemos se entre os viventes ainda habita. Outras coisas mais acabam vindo, de como se trajava, os ambientes que gostava de frequentar. Chegam-nos por fim, o caráter, a personalidade, os trejeitos. Se a muito não vemos, remetemo-nos irremediável, a uma imagem concebida. Nosso personagem era assim por se dizer, uma pessoa difícil. Nesse lastro de mundo, que Deus fez pra ajuntar miséria, chamado de sertão, quando se falava duma pessoa feito Juvenal, não raro, as pessoas se benziam. E com os nós dos dedos batiam na madeira, volvendo ao santo de devoção, um pedido, para que longe de si mantivesse o que tinha vindo em pensamento.

Quando isso, porém não era possível, então diriam: “Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece.” E lá estava Juvenal montado no seu cavalo. Certeza tinham os que viam, não se tratava de nenhuma visão do outro mundo. Cavalo e cavaleiro, tudo muito real. Aliás, real demais. O bodum exalado, a capa de poeira volvida sobre si, o toque-toque dos cascos do equino, arrancando lascas do terreno de cascalho. Por mais que nunca tenham consciência disso, o que estar montado exerce empatia de imponência, de respeito, sobre os que não montam. Sendo que animais e seus donos possuem certa simbiose. Como se um ao outro entendessem o pensamento. Rastros de identidade no caráter e mesmo de semelhanças físicas se percebia. Nas crinas longa e negra, nas canelas finas, ao tempo, rijos músculos, bronzeados de sol. Suor e urina acidificando o couro, os pelos, os apetrechos de um, as vestimentas do outro. Num trote preguiçoso porque não havia necessidade de marcha mais desarnada, não naquele momento. Se lhes perguntasse não saberia dizer, de certeza, porque seguia. Acompanhava o cortejo da via sacra, em plena sexta-feira santa. A encenação da paixão de Cristo. Numa frieza quase desumana, como um ser doutro planeta. Como se os passos sofrido de Jesus, ainda que numa encenação, causasse a menor estranheza. Um dos centuriões de Pilatos que ia de largo, evitando que o cavalo pisasse alguém da multidão sequer lembrava. Aqueles ao menos demonstravam ira, escarneciam. Não era apenas a certeza de que tudo era de mentira, que um nada de sentimento esboçava. Interessava-lhe entender porque as pessoas faziam caras de pena, diante daquelas cenas sabidamente simuladas. Se não sofria de verdade, não entendia. Uma coisa ninguém sabia, Juvenal tinha visões.
Dom Quixote de La Mancha. Era isso! Talvez estivéssemos ali, em pleno sertão nordestino, diante do herói, anti-herói de Cervantes. Dom Quixote e seu cavalo Rocinante, vivendo suas peripécias em plena selva branca. Seu fiel escudeiro Sancho Pança, não sendo de carne e osso, um fantasma, com quem conversava a todo tempo. O homúnculo do burrico, na verdade seu subconsciente, a que suas atitudes, ora aconselhava, ora recriminava. Não saber ler Juvenal, compensava com uma memória prodigiosa. Se ia pra feira da Vila, ficava horas a ouvir os vendedores de livretos de cordel, e as incríveis narrativas das aventuras, de Davi e Golias, Sansão e Dalila. Do príncipe Romuldo, a loba Rosadina, e a princesa Teodora. Ouvia e memorizava verso por verso, uma vez retornado pra sua casinha nuns cafundós onde Judas  esquecera as botas. Ao cair da noite, hora de namorar a lua, de tomar banho de estrelas, coroava tais momentos repetindo com precisão fidedigna para os seus, as histórias ouvida dos mercadores de palavras cantadas. Aragão e Catalunha, pra nós, eram os povoados de Piau e Caboclo. As incursões do nosso personagem tinham por cenário o vaso da Catarina, as margens do “velho Chico” na parte cheia de “Canyos”. Juvenal dedicava particular atenção aos modos das pessoas, interessava-lhe o comportamento humano. Fascinava entender particularmente, a raiva, o rancor, o ódio. Que dor doía mais, a dor física ou a do coração? Curiava saber por que ele nunca sentira tais coisas? Não porque não quisesse, queria até mesmo um dia sentir. Já se envolvera em brigas. Acabaria tornando-se assassino por conta de uma. Num dia de feira que tirou pra beber, dentro do cabaré de Zuleide e Gracinha. Se encontrou com Mauro que tinha o apelido de Lobinho,  um fazia companhia ao outro. Exaltados os ânimos começaram a se estranhar. De verdade estavam com o cão no couro, perdeu as estribeiras Lobinho, e atacou com uma faca o companheiro, de mesa de bar. Defendendo-se Juvenal, com a mesma faca matou o cabra. Mas esse nem fora o primeiro, nem seu último crime. 
 

Napoleão e seu cavalo Le Visir! De fato era com quem Juvenal e Soberano pareciam.  Além de gostar de cavalos, outras semelhanças mais, vamos encontrar entre o imperador Francês e nosso camponês. Na estatura, na cor da pele, no cabelo revolto. De certo que o de cá, não nascera em família nobre, no entanto como aquele, fora o segundo dentre os oito filhos que seus pais, José Maria e dona Otília da Conceição teria posto no mundo. Com muito sacrifício criaram: José, Juvenal, Luciene, Elisa, Luiz, Pauliano, Carolina e Jerônimo. O caráter rebelde e indisciplinado rendeu-lhes castigos severos, Por desobediência a ordens paternas, amargaria noites e dias trancado num quarto sem comer. Assim como o monarca, nascera no dia 21 de julho, duzentos anos apenas separava os nascedouros, 1971. Mania tinha de andar com a mão sobre o abdômen. Sem com isso tivesse, como aquele, problemas de úlcera estomacal, mas unicamente para manter contato com seu segundo maior amigo, o revólver calibre 38, carregado de balas. Com a máquina de fazer buraco em gente, mandou uns tantos de almas sebosas pra “Terra dos Pés juntos”. Encabeçou esse rosário macabro, um preto velho, metido a curador. Foi assim, um dia dona Otília foi tirar barro de louça pra fazer umas panelas e acabou mordida por uma cobra venenosa. O tornozelo inchou na mesma hora, ficou preto da cor de carvão. Uma vez em casa, colocou encima do ferimento seiva das folhas de barbatimão e a gosma da Babosa. Tonta e muito fraca, prostrada ficou numa cama. Deram-lhe de beber um chá de jalapa, que muito pouco adiantou. Se queimando em febre, trouxeram um rezador que atendia na feira do povoado Caboclo. O preto velho aprontou um remédio que incluía óleo de baleia, pó da canela seca de Siriema, espinhas do peixe Cará, pena de papagaio novo que nunca falou. Tudo isso tinha o benzedor. Já fedida estava a ferida, deu gangrena. Então colocou raspa do entre casca do mulungu e enrolou com um pedaço de pano branco contendo maniva da mandioca brava. Depois de três dias delirando dona Otília morreu. Juvenal simplesmente esperou o sábado. Assim que o negro chegou pra começar o dia, nem bem armou a barraca, recebeu inteirinha a descarga do revólver. Seis tiros na caixa dos peitos. Juvenal tranquilamente saiu caminhando, montou Soberano e se foi. O que sentia era satisfação do dever cumprido. Certo de ter praticado justiça.


Alexandre “O Grande”, mais que a uma mulher formosa, amava Bucéfalo seu cavalo. De igual sentimento devotava Juvenal por Soberano. Eram reflexos um do outro, simplesmente extensão e reflexos. Dizem que Alexandre tanta paixão sentiu ao ver o cavalo pela primeira vez, selvagem ainda cavalgando nos prados no meio de um tropel, que passou três dias seguindo-o e apenas observando-o. Uma vez capturado preferiu ele mesmo domar. Sofreu ao tentar montá-lo, descobriria tempos depois que ele se assustava com a própria sombra. Entre Juvenal e Soberano ocorreu exatamente o contrário, o cavalo que era de outro dono ao vê-lo cismou de segui-lo. Juvenal era desses matutos arredios que se espantava com qualquer coisa. Achou que aquele cavalo devia estar possuído, e que tivesse parte com o tinhoso.


Um dia estava tudo muito tranquilo, uma paz que aqueles que já cometeram coisas graves ficam assim muito ressabiados, preparado pro pior. E sempre acaba acontecendo. Mataram Seu José Maria Adonias pai de Juvenal. Pensou logo nos seus desafetos. Mas descobriu-se que havia sido por questões de demarcação de terras, entre vizinhos. Juvenal ficou muito triste. Durante o sepultamento jurou vingança. Antes de descer o caixão à sepultura colocou uma moeda na boca do finado Adonias. O próprio demônio lhe contara, numa das vezes que se viram, que antes das portas do inferno e do purgatório existia o rio do Limbo. As margens haviam dois barqueiros, irmãos gêmeos, Caronte e Corante esperando os espíritos desencarnados pra fazer a travessia. Juvenal recomendou: “-Vai meu pai na frente. Não tarda irei eu também.” Uma rabeca gemeu em duas notas que lamentava a morte e convidava ao choro. E concluiu: “-Peço que quando eu morrer matem meu cavalo. Pras terras dos mortos, pra onde irei, quero ir montado em Soberano.”


Fabio Campos 16 de Abril de 2015

Sol e Lua de Betânia

Lá estava o aglomerado de casa, quase rústicas. Vistas de longe assim, falava duma nesga de cores pálidas. Os tons de branco  destacavam-se formidavelmente. Nas fachadas de tijolos rebocados e caiados. Donde alguns quantos se destacavam. A torre da igrejinha. O balaústre do mirante do açude. O muro do cemitério. 
E como querendo também compor excepcional quadrante, flutuantes nuvens destacavam-se lá no céu azul de anil de Betãnia. 

O tudo que se via, o olho do condor era que via. E os que lá embaixo viviam, ainda estes, e àqueles pormenores não viam. Talvez soubessem, ou tivessem ideia ao menos, que existiam. Duas mil e poucas almas habitavam corpos, que habitavam casas, que compunham paisagens. Sem se darem conta que o eram, mesmo sendo. Obcecados na tarefa de gastarem vidas viviam.  Laboriosos na mais relevante das ocupações, a de viver, e viviam. O carreiro o carro, carreava. O menino brincava de ser ele mesmo. O mercador mercantilizando palavras.  O cachorro deu com o rabo no ar, vã tentativa de espantar o tédio, de ser cachorro. Todos protagonistas de si mesmos. Mas se encenavam suas próprias histórias, aquele era tempo de viver outra encenação. A da Paixão. Teve início num pedregulho que tinha ao lado do campo de futebol. Abandonado naquele momento porque era sábado de aleluia. E como era semana Santa ninguém queria jogar bola pra não ser taxado de Judas. O lajedo excelente lugar para a cena do Sermão da Montanha. O que recebeu o nome de Jesus seguiu andando, acompanhado dos doze. Na casa de Seu Zacarias o burrico atado, foi requisitado por dois discípulos para que se cumprisse a palavra. "Alegre-se muito, cidade de Sião! Exulte Jerusalém! Eis que o rei vem a você, justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, um jumentinho, cria de jumenta. Zacarias 9-9."

Uma pequena multidão seguia. O público quis também participar de cada cena. Na hora de acenar com os ramos de palmeira acenaram. Acompanhavam e gritavam junto com os atores: “-Salve o filho de Davi! Hosana! Hosana!” A verdadeira Betânia ficava a milhares de quilômetros dali, do outro lado do Atlântico. Tão distante do sertão e da caatinga. Ficava só a três quilômetros da cidade velha de Jerusalém e do Monte das Oliveiras. Bethania em grego, Bét-nyyah em hebraico, “casa de Ananias”, “casa dos figos verdes”. A cena da última ceia do Senhor ocorreu no patamar defronte a igreja. O Jesus adolescente, de barba rala, cabelos revoltos, e pele morenada pelo sol do sertão, partiu o pão, e distribuiu entre os doze. Elevou o cálice a cima da cabeça e compartilhou. Seu Luizão sapateiro quis fazer o papel de Judas. Cena das mais difíceis, o pobre discípulo condenado a ser o traidor, desespero perfeito na arte de fingir fingiu. Com força atirou contra os paralelepípedos, o saquinho com as moedas que com Caifás barganhou a traição do mestre. Quem terá sido os que pegaram as moedas? Haveria quem dissesse que cada um dos que pegou sofreu um mau presságio. As moedas que custou o sangue precioso de Cristo encerrariam maus desígnios para quem delas se apossaram. Um pastor de ovelhas depois de pegar pra si uma daquelas moedas de ouro, numa tempestade repentina perderia metade das ovelhas do seu rebanho. Um agricultor, dizem porque pegou uma daquelas moedas, amargou a ruína de ver a lavoura perdida por uma enchente que destruiu tudo.

“Mazurca velha mazurca/Dança grossa do meu sertão/ Quando toca uma mazurca véio macho cai no salão/ Dança duro batendo o pé balança a casa, balança o chão.” Assim dizia no rádio a canção de Luiz Gonzaga. Na vila Candunda havia a tradição de se dançar mazurca. Por ocasião dos festejos juninos se dançava na praça. Desde a quaresma começavam os ensaios. Um grupo de meninos e meninas, outro de jovens: moças e rapazes. E outro de adultos e idosos. Todos participavam do folguedo. Trajados em vestes de poloneses os homens. De polacas as mulheres. Representavam agricultores da região de Cracóvia. A tradição chegou trazida por um padre polonês. O padre chegou a vila no tempo da segunda Guerra Mundial, quando Hitler quase dizimou da face da terra, o povo Judeu. A igreja desenhada pelo padre tinha os traços arquitetônicos do Santuário da Divina Misericórdia da capital polonesa. Devido as aparições e revelações de Jesus, reconhecidas pela igreja Católica a Santa Faustina Kowalska. Os homens com seus chapéus verdes com uma faixa branca e preta, ornada com uma pena vermelha. As mulheres tinham aventais com franjas e lenços coloridos na cabeça, toda vestimenta predominava as cores vermelho e branco da bandeira da Polônia. Era engraçado, pra quem jamais vira, os passos da dança. Uma fila de homens, outra de mulheres, realizava bela coreografia. Inicialmente soltos, de passos, cujo ponto forte era o bater dos pés, como um sapateado. Depois as duas filas se aproximavam e dançavam aos pares. A um toque diferenciado dos músicos e todos largavam seus pares e trocavam de parceiros. O fole, e a zabumba predominavam, o triangulo, o pandeiro e o pífano eram alternativos.

Betânia não vingou no sertão. O nome sugerido pelo padre polonês, foi aceito e acolhido somente pelos habitantes mais jovens. Entre os antigos moradores porém, jamais deixaria de ser Candunda. Os mais antigos, nunca se acostumaram com o novo nome sugerido pelo pároco. Candunda era espécie de peixe de pequenas dimensões, alimentava-se basicamente de microrganismos dispersos na água. que filtravam à medida que sugavam a água pelas minúsculas guelras, com a ajuda de branquispinhas que eram excrescências ósseas dos arcos branquiais. (estrutura que segura as brânquias ou guelras). O peixe  não vivia em cardume e se reproduziam pouco. Com alternância da lua entre minguante e crescente. O fundo dos açudes seu nicho, tinham preferência pela profundidade onde podiam estar livre dos predadores, os peixes maiores, as tarrafas e os puçás dos pescadores. Ao atingirem a idade adulta não passam de 3 a 6 centímetros de envergadura. Na quaresma devido a época favorável a pesca, tornava-se presa do homem. Dava uma prato típico do povoado a fritada de Candunda. 

Existia uma lenda sobre a chegada do peixe ao açude da vila. Dizia que os colonizadores desbravando os sertões chegaram à região montado em mulas e jumentos. Cansados de tanto andar debaixo do sol quente, a caravana resolveu descansar. Ao se aproximarem de uma clareira perceberam um grupo de mulheres morenas, lavando roupa as margens dum lago, no sopé duma montanha. Aproximaram e perguntaram se podiam pegar um pouco de água, as mulheres permitiram, desde que algo lhes fosse dado em troca. Com uma exigência especial: tinha que ser algo vivo que nunca tivessem visto. Não aceitavam as mulas pois já conheciam, nem carneiro pelo mesmo motivo. Entre os colonizadores havia um negro escravo com uma moringa de couro de carneiro, na qual trazia uns peixinhos que pegara no rio Jordão. Pois diziam quem carregasse daqueles na moringa jamais morreriam de sede, nem nunca lhes faltaria água. Eles colocaram alguns dos peixes no lago depois se abasteceram da água de que necessitavam. O escravo disse as mulheres que ele viera da aldeia de Candundo em Angola na África. O povo do sertão aportuguesou Candudo, pra Candunda. Pondo este nome no peixe, por soar melhor. O negro se estabeleceu naquela aldeia. Constituiu família com uma daquelas mulheres. Teve um sonho em que seus antepassados teriam dito que se os nativos trocaram Candudo pra Candunda, três outras palavras o povo devia também substituir, dali por diante: Aldeia chamariam de Povoado, Lago seria Açude, e Montanha sempre chamariam de Serra.

Sol e Lua eram duas meninas. Nascidas gêmeas. Filhas de Maria Lúcia e José Francisco. Não sendo porem gêmeas idênticas. Uma tinha a pele morena como o pôr-do-sol. A outra a pele alva como uma lua cheia à meia noite. Sol, era franzina e de cabelo castanho encaracolado. Lua, de mais estatura tinha cabelo preto escorrido. Sol, como o astro que lhe inspirou o nome  extrovertida, pra não dizer supervitada, que o matuto apelidara de “esprevitada”. Lua, a personificação da palavra recatada, tímida.

Um dia, as duas meninas, juntamente com Júlio irmão mais velho, se inventaram de subir a Serra do Candunda. Naquele dia voltaram da escola mais cedo porque houvera festa para as crianças. Quando os pais descobriram o desaparecimento ficaram desesperados. Todo o povoado se mobilizou na busca. Logo caiu a noite. O céu negro-azul chuviscado de estrelas piscou-piscou, pra o sertão se regozijar de encanto, em cada canto.  Os aldeões vasculharam toda cercania. Em bandos, abriram picadas na mata com facões e tochas, e nada. De repente alguém notou um imenso clarão vindo do alto da serra. Se dirigiram para lá. E qual não foi o espanto de todos, encontraram as três crianças, de joelhos adoravam a virgem Maria, aparecida sobre a rocha. De um lado da virgem santa era dia, do outro era noite. O padre polonês ao ver o que via, entendeu sua missão. E disse aos que ali se encontravam: daquele dia em diante, a padroeira da aldeia seria Nossa Senhora da Conceição. Porque aparecera aquelas três crianças. E era o dia delas.
  
Fabio Campos 10 de Abril de 2015.