A CORDA E O CORDÃO



A montanha ao fundo muito longe, as casas rústicas muito perto. O mato, o cheiro de mato, molhado. O tempo era outro. O barro, pondo muito de sua cor nas coisas, na tez das coisas. Uma mulher com rosto de irlandesa. Uma menina triste de cabelos crespos, com meia dúzia de pequenos cachos. Os olhos negros, numa tristeza de dar dó. Um cenário que tinha tudo pra ser unicamente de mulher, tinha homem. O sol felizmente não perdia a graça, diante do que se apresentava. Simplesmente tinha o domínio. A cidade se houvesse seria muito longe. Distando dali horas de pensamento, de tão longe. Era como um sonho ir até lá. O vento inflamava-se de solidão. Um silêncio descalço ribeirando pelos cantos, ia tangido pelo balido das cabras. E tudo estaria imprestável não fosse dia. A luz do dia era tudo. Um poço, muito tinha pra dizer, mesmo permanecendo calado como estava. O que será que havia naquele lugar? Tudo ali cheirava a cansaço. Tudo parecia muito, muito cansado de ser o que era.

Outra montanha, muitos, muito pensar distante daquela. No meio da planície um orfanato. Construção rústica no meio do deserto. O que aquele orfanato foi fazer naquele fim de mundo? Por que não se dava pra ouvir o barulho das crianças? Onde fora parar a algazarra? Uma mulher de meia idade apareceu à porta, trazia um copo na mão. Havia água naquele copo. Água límpida, cristalina das mais desejadas pelo que tem sede. Dois braços abraçavam um corpo magro. A menina pretinha com o cabelo cheio de pequenos cachos, presos por fitas coloridas. Por que estava ali? De nada sabia, que outros, que jamais conhecera, tinham pensando um destino pra ela. Nada entendia do que acontecia. Entender era o que menos importava. Ter que ficar, redimensionar sofrimentos. Jamais imaginou outro mundo que não fosse o que sempre vivera. Brincar com os irmãos no cair da tarde. Depois de um dia corrido. Cheio  de panelas pra lavar, e água no poço pra ir buscar,  depois de varrido o terreiro de casa. Calunga de pano pra brincar no cairzinho da tarde. O que estava pra vir, fosse o que fosse, seria novo. Encararia qualquer realidade nascera pronta pra isso. Desde que não houvesse alguém igual o pai no caminho. E tudo já estaria valendo a pena. Não queria que lhe batesse e que agredisse tanto, várias vezes, muitas vezes durante o dia, tão desnecessariamente. Pensou nos outros irmãos, como estariam.

Se dependesse dela, ninguém jamais ficaria sabendo o que acontecera. Mas era tão forte que vinha. E vinha em forma de relampejos. Os batentes sujo de sangue. O facão ensanguentado na mão reluzindo. Os gritos, abafados pelo trovão. Os raios clareando os pingos que lavavam o rosto. A chuva aumentando, o terraço inundado. O corpo inerte do seu irmão sendo arrastado pelos braços, os calcanhares, as pernas cavando um sulco, fazendo um rastro de lama que seria apagado pela água da chuva. Lá no canto da cerca havia uma espécie de tablado que a mãe usava como batedor de roupas. O corpo franzino do menino foi arrastado até lá. Estendido sobre o lastro, os braços pendidos, as mãos balançando. O facão erguido furando o bucho da noite. O braço longo, longamente musculoso, negro. Donde estava só conseguia ver as costas do pai. As costas molhada desnuda, a pele escura luzidia. Um tiro ecoou. O projétil fez um furo próximo à pá das costas. Saiu no peito aspergindo sangue na relva. Viu tudo, pasmada viu quando o pai tombou sobre as próprias pernas, ficou de joelhos, pra depois despencar de bruços. O golpe mortal da folha de aço que seria pro menino só feriu o ar. A mãe na soleira da porta segurando a espingarda, o cano ainda fumegante. Só a coragem de mãe pra por fim ao pesadelo de uma noite macabra.

A foto da garota sorridente era foto de formatura. O traje negro entusiasmava ainda mais, à foto preto e branco. O capelo dando ar de superioridade. Os melhores anos da sua vida passara ali. Dentro da universidade. Se pudesse viveria tudo de novo. As colegas sabiam de sua história da infância sofrida. O cordão preto da beca cruzava o colo, e terminava num botão também preto preso a uma franja negra. Acariciar com os dedos aquele cordão a fez voltar no tempo. Lembrou de um novelo de cordão que o pai tinha guardado dentro de sua cesta de tralhas. Tinha o maior ciúme dele. Não tolerava que ela e seus irmãos brincassem com ele. O barbante de algodão era usado pra muitas coisas. Para construir o aprisco. O cordão serviu pra marcar o alinhamento do estaqueamento. Também  serviria de prumo, e pra medição. O cordão, segundo seu pai, era uma espécie de amuleto que só devia ser usado pra algo muito significativo. Inaceitável que fosse alvo de futilidades. E pro pai empinar pipa era algo muito inútil. Achava até que trazia maus agouros pra aldeia. O irmão transgredira sua regra e pagaria com a vida tamanha desobediência. Primeiro levou uma surra de cordas na frente dos demais irmãos. Aquela corda tinta do sangue meu e de meus irmãos, ficava pendurada na comieira da casa como um troféu. Éramos obrigados a assistir perfilados a barbarie. O pai descarregava toda sua ira covarde em pobres indefesos. Dizia que era para que servisse de exemplo. Foram tantas as pancadas que o menino acabou desmaiando. Como gostaria de ter o poder de apagar da mente aquelas lembranças. Esquecer todas as coisas ruins da infância, Mas elas sempre vinham. E uma das piores recordações, chegou junto com uma lágrima. Num vão único do piso de barro batido da casa, forrado com esteiras de palha, dormiam ela a mãe e os sete irmãos. Sendo ao todo quatro meninas e três meninos. Numa determinada madrugada acordou sendo bolinada pelo pai. Uma de suas mãos tapava-lhe a boca pra que não gritasse, e explorou seu sexo. Naquela noite foi brutalmente penetrada. A mãe nunca soubera disso. A depender dela jamais saberia. Sabia que se contasse correria o risco de morrer. Isso ele havia lhe prometido. 

Como uma espécie de prêmio de consolação, do pai ganhou um cordão vermelho, de muitas voltas, enfeitado com miçangas nas pontas e tinha um pequeno búzio preso. O pai lhe deu, pendurando ele mesmo ao pescoço, e era uma menina de dez anos apenas. Deu-lhe dizendo que era pra mantê-lo sempre. E que por nada devia o perder. Só depois disso percebeu que cada uma de suas irmãs também tinham cordões pendurados no pescoço, e que eram de cores diferente. Da irmã mais velha era verde, as demais eram amarelo e azul. Numa determinada noite acordou e fingiu que permanecia dormindo. De olhos serrados conseguiu ver o pai abusar da irmã mais velha. E foi assim nas outras noites. Descobriu que para cada cor de cordão, ele abusava de uma irmã, num determinado dia da semana.

Naquela noite na América sonhou um sonho atribulado. As lembranças acabariam influindo nos sonhos. E viu um homem negro que usava um cavanhaque igualmente negro. Ele entrou na aldeia de sua infância, e portava um belo rifle. Suas roupas tinham, a camisa e a bermuda, partes feita de couro de leopardo. A copa do chapéu era circundada por uma tira de couro de urso. No colar que trazia pendurado no peito havia dentes e pequenos ossos de animais, de várias espécies, e não duvidasse que dentre aqueles houvesse ossos humano. O homem não entrou na casa. Preferiu sentar-se num canto estratégico donde pudesse ver a entrada da aldeia. Talvez temesse ser surpreendido. Temia os muitos inimigos que tinha. E conversou muito com o pai. E fumaram cachimbos, abastecidos de ervas aromáticas. E davam aos pequenos para tragarem, e riam ao vê-los caírem grogues no chão batido da aldeia. O pai negociou com o homem ervas, e a moeda de troca era permitir ao estrangeiro fazer sexo com a mãe. Como podia ceder a própria mulher pra deitar-se com outro homem, em troca de plantas alucinógenas?

O homem quis saber se a água do poço da aldeia era de boa qualidade. O pai diria que não, mas diria que havia outro dentro da mata cuja água era pura, cristalina, saborosa. O estrangeiro quis conhecer. Uma mulher com cara de irlandesa, na verdade uma negra albina, passava o dia na borda do poço. Todos acreditavam que quem nascia com a pele clara na aldeia possuía o dom de afastar demônios. Por isso elas protegiam os mananciais d’água. Em troca de algum alimento emprestava baldes de ferro, carcomidos nas bordas pela ferrugem e cordas velhas, aos que quisessem tirar água. O estrangeiro por um pouco de farinha alugou aqueles apetrechos e com o pai adentrou a mata. O poço era profundo da borda em diante breu. Jogando uma pedra dava pra ouvir o eco do espelho d’água sendo importunado. O pai tinha um plano macabro. Assim que o estrangeiro debruçou-se pra ver se conseguia ver o fundo, foi empurrado. Seu corpo despencou dentro do poço sucumbindo num grito apavorante. O pai sorriu um riso diabólico, e tomou posse do objeto de sua cobiça, o rifle do estrangeiro. 

O pai foi enterrado num lugar perto do aprisco. Talvez fosse ali mesmo que quisesse um dia ser enterrado. Onde tantas vezes amanhecera embriagado. Ouviria sempre o chocalho das cabras a cada manhã. Sua cova foi circundada com uma corda vermelha sanguínea. Sangue do seu sangue, por ele próprio derramado. Dois gravetos, tomaram a forma de cruz. Unidos transversalmente por um longo cordão de algodão, a não sobrar um pedaço que fosse. Sobreposta linha sobre linha, tantas vezes a formar como se um coração. Findado num nó de ódio e desgosto. 

Fabio Campos 19 de Agosto de 2016.  

*P.S. A Gravura que ilustra este Conto, é uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que está na Igreja da Mesma, em Paulo Afonso - Bahia.  

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