JEREMIAS, ONDE ANDARÁ?





Olhando assim, talvez não desse muito pra saber se era dia ou noite. Isso acontecia porque era inverno, e aquele, vinha da alma. Jamais se acostumara com aquelas mudanças. Tudo a dar-lhe imensamente nos nervos. As nuvens fuliginosas, descendo ameaçadoras. Diluindo-se em tons grafite, trazendo gosto de papel carbono. E o frio se apossando de cada uma das vértebras. Escalando a espinha dorsal, petrificando os sentidos, desbotando as vontades. A rua, inexplicavelmente longa indo até o infinito. Para o além, dava pra ver o brilho do sol. Mas a quentura, impossível sentir. Os prédios se agigantavam tanto que chegava a se curvarem, alucinadamente, como se quisessem sufocar o céu. Portas e janelas, olhos monstruosos a observarem para além da mente, do homem que passava. Incólume avançava. Os demais seres que em sentido contrário seguiam eram como máquinas. E deslizavam na calçada, como se debaixo dos pés tivessem rolimãs, ou andassem sobre esteiras rolantes. Todas as crianças, como em transe haviam partido. Quem sabe para um país muito distante marcharam. Muito provável se chamasse “Mundo dos meninos”.

O homem parou, não parecia nenhum pouco cansado. Talvez precisasse refletir. Sentou-se ao meio-fio. Pouco se importando com o que os outros pensavam, a seu respeito.  A calça escura, os sapatos pretos, o blusão também de couro.  Fumante, tudo nele cheirava a nicotina. As unhas, os dedos, os cabelos, as narinas, e mesmo a respiração. Tirou um frasco de dentro de um bolso interno do blusão, parecia de perfume. Era uísque. Sorveu um trago. Acendeu um cigarro, não sem antes praticar o quase involuntário gesto de bater com a ponta na caixa de fósforos. A fumaça azulada desprendida lhe envolveu como numa aura mágica, soberana. Os olhos vermelhos a dizerem que a noite passada ocorrera em claro. Precisava fazer a barba. Tomar um bom banho, uma ducha quente, revigorante. Enxugar-se com uma toalha felpuda, cheirando a coisa limpa. Precisava repetir todo um ritual de banheiro. Achava que aquilo ajudaria a devolver-lhe, ainda que ilusória, a sensação de paz. E de rearranjo do caos que se instalara dentro de si. E que parecia não haver prazo pra acabar. Pelo menos hora e meia ficaria sentado na privada, sem vontade de fazer nada, nenhuma necessidade fisiológica. Simplesmente porque gostava de perder tempo sentado ali, evacuando pensamentos. Vasculharia os bolsos da calça, encontraria um folder, desses que se nos são entregues nas portas das lojas de eletrodomésticos. Passando a vista por cima, sem se ligar no preço das ofertas, pois era o que menos interessava. Admiraria o trabalho. As cores, a arte gráfica. Quantos profissionais teriam se envolvido naquele trabalho?

Lembrou de Lucas um amigo de infância e pré-adolescência. O que estariam fazendo naquele momento? Talvez não mais vivesse, nem nunca mais se veriam. Também Zé Maria. E Samuel? Outros amigos de infância, e de início de juventude dos quais lembrava agora. E Rosinaldo? E Heleno? Onde andaria Tereza sua primeira paixão da terceira série? Jamais seria sua namoradinha. Observava-os como numa espécie de túnel do tempo. Revia-os como em vídeos e fotos que nunca, jamais tivera feito, mas que estavam lá. Perpetuados dentro de sua mente. Quantos dos seus amigos de infância se havia tornado militar? Ainda outros Lucas, outros Samuéis no mar da vida cruzariam seu caminho. Cada um porém com suas particularidades, muito diferente uns dos outros. Alguns poucos como ele se tornara artista, cantor, e intérprete. Soube até de um que virou escritor. Considerado, por parte de alguns familiares, bichos estranhos.  E eram mesmo,  mudavam de humor com a inconstância dos ventos. De muitas vezes não aceitarem nem a si mesmo.

Nunca entendera de quando estivera casado com Marlene, todas as vezes que estava a pia, lavando as louças da janta as mesmas lembranças vinham. Sempre das mesmas pessoas. O amigo Fausto, um policial, uma amizade tardia, da fase adulta, com que havia se encontrado muitos anos depois. Encontrou-o casado com Viviane, ou talvez se chamasse Mirian sua esposa? Lembrava sempre da queda de bicicleta que Fausto levou e quebrou um dos incisivos. E desde então seu sorriso foi outro. Ficou com cara de menino levado. Os cabelos e os olhos espichados como de oriental. No flagrante das suas lembranças ele estava sempre sorrindo e mostrava os dentes desarrumados.

Naquele instante se perguntou. Se alguém já não teria se dado ao trabalho de querer saber que imagem os amigos do passado teriam guardado de si mesmo? Einstein, o grande físico. Será que teria gostado da quão excêntrica e irreverente imagem, estirando a língua pra humanidade, com a qual ficaria eternizado? Lampião, o rei do cangaço, apesar de não ser tão culto quanto o cientista austríaco. Preocupou-se em deixar pra posteridade uma imagem bem mais sóbria. Contratando inclusive um fotógrafo para tal finalidade. O que esperava que lembrassem dele pelo jeito irreverente, boêmio, amante da paz? Não fosse aquele o momento certo pra se fazer uma retrospectiva da própria vida. Ao menos achou por bem fazer uma auto avaliação.  Se dando conta àquela altura da vida, que não era mais o rapaz que tanto insistia em permanecer dentro dele. Ainda compunha belas músicas. Tinha que admitir o corpo, no entanto, já não era o mesmo. A cabeça funcionava a mil. O cabelo, a barba tornado grisalhos. A visão já não correspondia como antes. A frequência com que fazia sexo a cada ano silenciosamente diminuindo. Os problemas de saúde pouco a pouco aparecendo. Quase que por necessidade leu artigos sobre a próstata, a diabetes, a pressão arterial. Nesse ínterim os shows foram escasseando, a fama de outrora assustadoramente se esvaindo. Antes que a depressão com seu ataque mortal se instalasse, como um golpe de mestre investiu além do álcool. Passou a usar anfetaminas, uma droga leve. Até certo ponto aceitável, fazia parte. Afinal tão comum no meio artístico. Servia de estímulo, até mesmo pra manter a euforia que o glamour do palco exigia.

Sentia muita saudade de alguns anos tão legais do passado. Tão intensamente vividos, e que agora não passavam de cinzas como aquelas do cigarro apagado na sarjeta. A velha calça jeans, desbotada. O orgulho de viver num país tropical, de ter tido um fusca e um violão. Sol e praia o ano inteiro. Do desapego a bens materiais. Achava bacana a filosofia de vida: “Viva a paz e o amor e deixe viver”;  “Faça Amor não faça Guerra”; “Go do Back to Bahia”; Art Pop; Woodstock; tatuagem do símbolo hippie no delta, surfar em Saquarema, curtir Búzios ao menos uma vez por ano. Como doía ver que de tudo isso, sobrara somente as ruas? Voltar pra clínica de recuperação jamais... Preferia a morte. Não se achava uma pessoa ruim, não se considerava do mal. Os filhos não o entendiam. As ex-mulheres também não, o deixaram. Se sentia só, injustiçadamente só. Sempre se achou um cara do bem, amante da paz, da natureza, do amor livre.
Sem saber direito porque veio a lembrança de Jeremias “O Bom”, personagem do chargista Ziraldo que ilustrava a sessão de humor da Revista “O Cruzeiro”. Isso na década de setenta! Num misto entre perplexo e feliz dos seus lábios saltou uma quase resignada constatação: “Poxa! Como estou ficando velho. Afinal sou do tempo do Pasquim!” Das charges de Jaguar, Ziraldo, Fausto Wolff, Henfil com sua “graúna” o “Fradim” Paulo Francis e seus textos satirizando o governo do regime militar no poder, Millôr Fernandes. Tropicalismo, “Garota de Ipanema”.  Viu nascer o regime militar, crescer e tomar conta do país, mas também veria cair. 

Só agora entendia por que Jeremias era chamado de “O Bom” Mas pra onde tinha ido aquele jovem idealista? Aquele que por tanto tempo morou dentro dele? Aquele que um dia foi pras ruas, enfrentou tropas de choque, jato de gás lacrimogênio nos olhos, quase ficou surdo com as bombas de efeito moral. Levantou a bandeira da Une na porta da universidade. Considerado que era um subversivo. Porradas de cassetete de polícia da cavalaria. Cabelo grande, bolsa tiracolo cheia de panfletos contra o governo, a fugir pelas avenidas e becos escuros. Pra ser considerado subversivo naquela época bastava ser leitor do “Pasquim”. Logo era chamado de maconheiro, vagabundo, visto com maus olhos. E ser vinte quatro horas por dia investigado pela polícia. Quais filmes via, peças de teatro que assistia e livros que lia? E pronto seria preso. Ter os dedos todos borrados, deitar digitais nas fichas de prontuário do Deic. A famosa foto 3x4 de lado, frontal segurando a plaquinha preta com a data da prisão.

Num cartão amarelado guardado em armário de ferro, de enormes gavetões que deslizavam sobre trilhos. Quando eram fechados emitiam o som característico como grades se fechando. Um breve texto escrito à esferográfica descrevia o perfil, as tendências aos crimes e os delitos em que o prisioneiro se enquadrara. De certo uma frase mais estaria faltando naquele prontuário: “Este deliquente matou um homem. Ele mesmo. Daqui a uns 40 anos pelo menos.”

Fabio Campos, 02 de Agosto de 2016.

*P. S. A Gravura que ilustra este Conto é de NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO e se encontra na belíssima capela de São Francisco de Assis em Paulo Afonso- Bahia, construída em meados de 1965 pela C.H.E.S.F. 

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