A Família Azul (11° Episódio T.F.) Salmo 127


Era preciso descrever primeiro a casa. Ficava assim tão acanhada. Perdida no meio dos arranha-céus. Casinha tímida com suas duas caídas d’águas. Um alpendre torto, de velho. Calado, mas muitas histórias tinha pra contar. Histórias de malassombro, de bicho papão e de  fogo corredor. Presepadas de meninos arteiros, de peteca, de bornal e passarinho. E uma cobra gigante que atormentava as noites no escuro. A mãe chegou bem assim, na folha da porta. Na metade que ficava sempre fechada, apoiou o bração gordo. E seus olhos tristes se alegraram quando viram Tagor. Havia tanto tempo que não o via. Menino levado, sumia, e tempos depois aparecia. Agora era tempo de aparecer. O pai se pronunciou, com seu rosto de pedra. Por trás da mãe, olhou. As rugas não saiu uma se quer do lugar. Mas olhando atentamente dava pra ver que os olhos marejaram. E, calado estava, calado ficou.

Estavam todos doentes. A mãe tivera trombose, erisipela, diabetes, pressão alta. Além do que duns tempos pra cá dera de aparecer uma dor que começava no começo da espinha dorsal, de baixo pra arriba. e respondia cá, nas pás das costas. Sem falar numa tosse seca que lhe acometia, isso toda boquinha da noite. Antes de deitar, outras vezes, depois do jantar. Agora fosse dizer a ela que era por causa do cigarro, ficava valente. Ora! Que cigarro que nada, tantos anos fazia que tinha deixado de fumar.  Marcou até a data, foi exatamente no trágico dia do ocorrido com doutor Getúlio. Isso mesmo no dia que Getúlio Vargas suicidou-se. Chorou tanto, e teve uns acessos de tosse que quase morre, vomitou e teve febre. Prometeu daquele dia em diante não mais fumar e não fumou. Júlio tirou o chapéu do cabide, e ficou com ele nas mãos só pra ter o que mexer com as mãos. Mãos que rodavam um chapéu. E mais uma vez olhou pra Tagor. Tinha vontade de abraça-lo, dizer da saudade que sentira, mas faltava coragem. O orgulho ferido falava mais alto. Saber não sabia, qual reação seria a sua. Talvez aceitasse, só por respeito, o abraço. E seus braços lhe envolvendo, com suas mãozonas espalmadas afagando as costas. Longos braços, largas mãos de um filho, e de um pai. Ambos, sem vontade de falar, nada.

O Primeiro irmão estava lá na moldura do retrato. De repente entrou na sala, como um fantasma que voltava do passado. E chamou Tagor pelo carinhoso apelido que lhe dera: “Vamos ‘Ray’! Vamos pescar!” Aquele sorriso, os dentes brancos, molhados de saliva. A boca aberta. O rosto, as pupilas dos olhos refletindo a luz que entrava pela porta, numa manhã tão parecida com aquela. O irmão mais novo. Pisoteado morrera por um tropel de cavalos. O fogo na mata crepitando, o calor daqueles dias quentes. ‘Nunca mais’ eram palavras muito fortes. Nunca mais, as caçadas pela caatinga. Nunca mais, ir catar tanajura no cair da tarde pelas veredas que levavam a serra dos macacos. O jumento com os caçuás no alto da ribanceira balançando o rabo do mesmo jeito. Escoiceando as mutucas. Emprestando as mesmas recordações, as mesmas lembranças, do tempo de criança. 

O cortejo seguiu pela estrada de terra com uma ruma de meninos e meninas, vestidos em suas melhores roupas pra acompanhar Jaime a seu jazigo eterno, no cemitério do capão pelado. Ficava lá longe. Tá vendo aquele ponto branco na croa da planura? É lá o cemitério. Tudo em volta era azul. Os pés de craibeiras emprestando sua beleza de florescência pra o irmão de Tagor se enterrar com muita dignidade. E ficava o menino em cima do muro do cemitério se equilibrando, brincando de trapezista. Ainda bem que o pai não via, porque se visse lhe daria o maior carão. E a reprimenda era por que aquela travessura estragaria os sapatos comprados exclusivamente pro seu funeral. 

Ana Clara, quando era obrigada a ficar quieta tinha mania de ficar fazendo qualquer coisa com os dedos das mãos. Ainda hoje, não sei que mania era aquela. Todos sentados no banco da capela. E Clara ficava tentando dar nó nos dedos. E os outros irmãos apenas a observava, curiosos talvez. A menina azul, dos olhos azuis, dos lábios azuis, tão finos. A franja derramada na testa. Não sei como não sentia agonia, aqueles cabelos quase entrando nos olhos, brincando de pega com os cílios cujas pálpebras moviam a intervalos frequentes. Na gaiola tinha um guirrinho, azul. Na tarde azul passou um vento. E o guirrinho morreu. Seu Irineu disse que foi o mau vento que matou o passarinho. Às três da tarde João, Lucas e Pedro parara o joguinho de futebol pra ir tomar suco de beterraba com sequilhos, de dona Faustina. Ficavam todos com bigodes vermelhos, e sorriam com dentes de vampiros. E era o sol azul, as nuvens azuis. Os dedos azuis, as unhas azuis, os lábios azuis, do meninos defunto.

E ia o mundo do anel do gigante de Avor vivendo seus dias. Alberta a outra irmã de Tagor queria ser cantora lírica, chegou a trabalhar na boate ‘Danúbio Azul’. Nunca quis casar, caiu nas graças dum empresário rico do setor têxtil. Conheceu Paris, Londres, Amsterdã. Trouxe lembranças de cada país que visitou. Nunca tinha deixado Poço da Areia, na vida azul que vivia. E passeou meio mundo ao lado do coronel Valadão. Dono de meio mundo de terra, em Cuba, Nicarágua, e em Pedra Azul, Minas Gerais, no Brasil. Só bebia vinho português, só fumava charutos colombianos. Na década de sessenta viajou por toda a América do Sul e Central apoiando os movimentos revolucionários a Une as Farcs. Desde a década de 20 vivia essa realidade. Conheceu Luiz Carlos Prestes, esteve na marcha da coluna Prestes, tudo fachada, revolucionário de araque. Só pra esconder seus ideais de anarquia, de enriquecimento ilícito.  Vivia sempre metido num terno chinfrim cáqui, calça boca de sino, sapatos cavalos de aço. Gostava de ouvir Bee Gees, o grupo ABBA, às vezes Elvis Presley e Rolings Stones, The Beatles. Usava o cabelo ensebado de brilhantina, bem aparado, um bigode fino desenhando a boca. E um eterno óculos escuro cobrindo-lhe os olhos, não importando a que hora ou ambiente se encontrasse. Recebia mulheres do mundo inteiro em suas mansões, para festas espetaculares. Uma vez que o setor algodoeiro, com o advento do nylon, entrou em decadência. O narcotráfico passou a ser sua atividade principal. Considerou que Valadão era um nome agressivo, fundou uma religião e passou a se chamar Pastor James. Fundou a igreja Adventure de Maria Madalena e os Santos Panos.

Os santos panos, também eram um código, para esconder o tráfico de drogas da América Latina pra Europa, e Califórnia americana. Onde entra a família azul nessa história? Rafaela a terceira irmã de Tagor de tanto sofrer no semi árido americano, resolveu mudar de vida. E numa das viagens que os adeptos de sua religião fazia de intercâmbio espiritual conheceu o pastor James que se engraçou da bela moça sertaneja. Os dois passaram a se comunicar por telefone, do modo fixo, que era o único meio de comunicação popular, existente na época. E desse relacionamento dariam a iniciarem um novo meio rentável, o tráfico de bebês. As mães pobres da vila Poço da Areia não tendo com criar seus filhos, entregavam a ‘irmã’ Rafaela que os levariam para serem adotados por famílias europeias. Assim era dito, a realidade podia ser bem outra, a retirada de órgãos vitais para transplante. 

A família azul era doente. Irmãos cheios de traumas, de ressentimentos, uns com os outros. Não se entendiam. Sequer se aceitavam prisioneiros do gigante de Avor. Mantidos enclausurados dentro da pedra de um anel. Vivendo suas medíocres vidas azuis. Tinham tudo pra ser felizes, mas não eram. Embora pensassem que eram. Sem jamais conseguir se libertar. Os cavalos de Avor desembestados desceram a montanha de Mallbor. Desunião, maldade uns contra os outros, inveja, era o que mais marcava a vida da família azul. A casa permanecia sem alcançar o progresso que a maioria da vila alcançava. Presa a um destino perverso. Perdida na maldição do azul. Doenças a cada um dos seus membros. Ajuntavam em vão. Quem sabe um dia se dessem conta do verso bíblico no salmo 127: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela".

Fabio Campos, 19 de outubro de 2016.  

P.S. A gravura que ilustra este episódio o 11° de T. Fashall é uma foto da imagem de São Vicente.       

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