O ENCONTRO DOS DEUSES (10° Episódio)



Os guerreiros de Andrômeda resolveram reunir-se no cemitério de Delphinus. Eram onze ao todo: Lacerta, Cignus, Vulpecula, Equuleus também chamado de Pegasus, Aquarius, Pisces, Alpha, Beta, Gama e Ômega. E claro, a anfitriã Andrômeda de Delphus. O céu ficou pequeno pra tantos deuses. Um a um foram chegando, causando alvoroço entre os humanos. Desciam das nuvens em meio a fogo e raios pavorosos, a dar nos nervos dos pobres mortais. Lacerta chegou montada num dragão que vomitava línguas de fogo. Na hora de aterrissar, a calda chocou-se com as catacumbas destruindo as cadeias que prendiam os mil demônios de Arminius. Assim que se viram libertos danaram-se a espalhar terror nos arredores das cavernas de Avor. O gigante de Avor acordou-se, muito irritado.  Isso era mais do que suficiente pra todos ficarem ainda mais preocupados. Na mão direita exibia três anéis. Cada um, uma pedra preciosa, turmalina, topázio e rubi. A turmalina encerrava o destino da família azul. Os irmãos azuis, presos a seu mundo azul, no dedo médio do gigante de Avor. A casa era modesta nos seus cômodos todos azuis. Tudo, dentro e fora, era azul. Viviam sob a maldição do azul.

João, o terceiro menino das bicicletas, deu-se ao trabalho de explicar aos membros da assembleia que Tagor continuava vivo. Simplesmente porque não era ele que estava lá, no dia da grande explosão. E num imenso telão projetado na parede da capela do cemitério foi exibido aos presentes um vídeo, feito naquele dia. Tinha como intenção dirimir as dúvidas. Os abutres se espantaram assim que a projetação na parede repetiu a explosão. As imagens se sucederam. Era um filme caseiro, amador. Primeiro a filmagem foi passada rapidamente de trás pra frente. O míssil explodido, implodindo em segundos. Como um fumante que engole todo o fumo duma só tragada. A nuvem de fumaça, poeira e destroço se consumindo para em seguida deslocar o ar. Fracionar toda matéria a sua volta. A imagem onde estava Tagor foi aproximada, e um homem com trajes árabes se ampliou na tela improvisada. A barba negra, o turbante, envolvendo os cabelos, o brinco brilhando douradamente debaixo do sol. O nariz anduco, a pele bronzeada de oleosidade debaixo do céu azul, e sol de verão daquela tarde oriental.



Uma mulher muito linda seminua. De pé sobre uma tumba que tinha no alto uma estátua de netuno toda de bronze, cujo tridente enlaçado por uma imensa serpente escamada com a boca aberta exibia a língua fendida laureada de duas presas ameaçadoras. A moça despiu-se totalmente. E admirava sua própria imagem refletida na lápide da tumba. Aquela pele alva, debaixo do sol. Sem pudores, sem medo de ser provocante. O cabelo incrivelmente não esvoaçante. Por que, um só fio não se movia ao vento? Seria real aquela criatura? Talvez não passasse duma estátua, uma deusa, de Vênus, uma Afrodite. Fruto da imaginação de muitas noites insones. De mente perturbada, doentiamente, febril. De frio e calafrios. Os seios afrontavam o vento. Desafiavam todas as bocas dos zumbis a pronunciarem um único “ai!”. Aqueles cabelos inquietavam. Não dava pra entender porque não esvoaçavam ao vento. Os lábios levemente abertos, como se fossem sussurrar algo incompreensível aos céus. De certo seria mais um desafio. Outro enigma. Alguém seria capaz de encontrar tão rara beleza noutro ser? Aquele ventre de mármore. Transpirava e movia-se tão sutilmente que somente se percebia se se estivesse atento. Como podiam conter tão ousados caminhos, de pelos? E o cheiro desprendido dali, mas que alucinava, quem se aproximasse se apaixonaria. Desavisadamente, fatalmente morreria por asfixia. Do lado que Tagor estava a visão que tinha era as costas, as belas nádegas, as pernas esculturais. Refletida via-se as espáduas, o ventre o púbis, as coxas bem torneadas. Do jeito que estava estática, Andrômeda foi arrebatada por Equuleus. O cavalo pretendia fazer amor com a deusa. E eram ambos do mais puro desejo sexual. As flores das catacumbas desmaiadas sem cheiro, nada tinham de orgânico. As cores desgastadas por conta de muitos dias de sol. Os batentes de granito polido, guarnecidos de lágrimas de parafina, branca, endurecida, das velas votivas, amplamente queimadas. O reinante nauseabundo cheiro de defunto.


A mulher nua, montou o cavalo. Desaparecera das vistas dos presentes a galope rumo ao sol, se equilibrando na linha do horizonte. Os raios encrenqueiros permaneceram deslizantes suavemente sobre os fios dos postes. E os bulbos das lâmpadas retiveram buquês de rosas roxamente cintilante. Um cheiro de amor invadira o ar. E os relinchos voavam abraçando o infinito, ardentemente abrasadores, ecoando por toda constelação de Andrômeda. Era preciso saber quais decisões haviam sido tomadas. O grande livro de atas ainda não tinha sido fechado. Nada até o presente momento, dera sinal de que se chegara ao final da reunião da grande cúpula. A espada de pedra de Lacerta estremeceu os pilares, dando a iniciar tremendo terremoto. E o gume mudava o tipo de material de acordo com o estado de seu humor. Ferro se ficava séria, bronze se zangada, inflamada de chamas, se rancorosa. Era como estava naquele exato momento, cheia de ciúme de Equuleus. O dragão ficara totalmente vermelho, naqueles momentos de puro ódio. Avançou em ataque sobre o cavalo. A espada atravessou-lhe o peito ferindo mortalmente. O sangue puro ouro, em estado líquido. Ao respingar no altar de Delphinus cada gota se transformava num esqualidus que nascia inteiro, completamente pronto pra luta. Os seus olhos escureceram na parte branca. Todos os lírios do cemitério alvos de medo. Os patos e os cisnes do lago escureceram as plumagens. Todas as crianças tiveram medo daquela cena. A água antes límpida e translúcida tornou-se vermelha como sangue. E um maremoto se formou atingindo mais de mil metros de altura. A força da água arrebentou a muralha do castelo de Delphinus. 


Foi grande a destruição. Os meninos puseram a brincar com os corpos dos guerreiros mortos, petrificados. Um que parecia um samurai tinha uma espada erguida à cima da cabeça. Apesar da calva, possuía longo rabo de cavalo. A armadura cobria todo o peito, e os apetrechos de guerra trazia todos, aderidos ao corpo. Um punhal com cabo de madrepérola e pedras preciosas encravadas na empunhadura.   A barragem feita com areia lavada. As pedras sobrepostamente quadradas. As mãos dos meninos engrelhadas de tanto mexerem com água. Os brinquedos todos molhados. Teriam que ficar o dia todo ao sol, antes de serem guardados. O forte de pedras com o impacto da água veio a baixo. A roupa de banho com as listras azuis e brancas. O desenho da boia com a âncora, e a corda bordada ao peito. O boneco inflável eternamente sorriso pregado no rosto. Sem nunca conseguir ficar triste, mesmo que ficasse sozinho. 


A morte de Tagor fora esclarecida. Na verdade não houvera morte, não dele. Um árabe muito parecido com ele morrera na explosão do míssil. Houve uma grande tempestade depois daquele dia. Se tudo desse certo, em breve seria outono. Um grande abraço de paz abraçava o mundo. Aconchegante e morno como a parte interna das mãos e dos braços, e doce feito gineceus de lírios, e musical como o amanhecer de inverno.  O clima de azul, de flores e perfume da seiva aromática do tronco de ipê, monstruosamente alto. As janelas com suas cortinas leves balançando suavemente ao vento. E entrava sacudindo e abraçando as poltronas vermelhas da sala tristemente solitária. A saudade de tantos momentos bons passados juntos. Tagor e Antonieta eram puro amor, cavalo e deusa. Pedra e aço, ferro e bronze. 


Os meninos passeavam na praça onde nasceram e se criaram. O parque infantil tinha cores alegres, os cavalinhos, os carrinhos, o carrossel. Os meninos gostavam de aventura subiam nos pés de fícus como João escalara o pé de feijão. E sumiam por entre as folhas. Esperavam encontrar um céu onde tivesse um gnomo sentado numa mesa imensa que possuísse móveis enormes. Não era, no entanto, hora pra conto de fábulas porque Tagor tinha um crime nas costas. Aliás, um não dois. O roubo do mapa do tesouro, isso quando era pequeno. O outro crime esse sequer lembrava. Esperava que Deus tivesse atirado nas profundezas do mar.


Depois de fazer amor, os amantes exaustos, ficaram caídos na praia. Ao recuperar alguma força o cavalo pôs-se a pastar a relva verde ao cair da tarde. Enquanto as ondas quebravam na areia produzindo a mais bela das canções para os ouvidos enamorados. A deusa, o corpo nu estendido sobre a areia, o cabelo molhado. Sonhava com tudo que uma alma satisfeita é capaz de sonhar. Cansada não tinha força para qualquer tipo de reação. Se o cavalo fizesse nova investida, condições nenhuma de reagir. Simplesmente se entregaria.


Fabio Campos, 10 de outubro de 2016.

P.S. A gravura de ilustração deste Conto é de minha querida mãe Dineusa Bezerra a altura dos seus 90 anos. Num dia qualquer do mês de setembro, logo no início da primavera deste ano de 2016.

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