Topázio (12º Episódio T.F.) Rafael e o Cárcere



Mestre Lucindo, ainda se recuperava do trauma de ter descido as portas do inferno. Por mais dias de vida que vivesse, jamais esqueceria aquelas cenas. O mundo debaixo de um céu de lama que se contorcia, viscoso, asqueroso. Como um coração dilacerado dum peito aberto. O cheiro não era dos melhores. Aquele aroma só sentira uma vez, quando fora visitar o filho que estava na cadeia. Acusado de conspirar contra o rei, ganhou a clausura. Por não aceitar a exorbitância de tributos, que ele e os demais camponeses das searas de Chevalier sofriam.


Houve realmente uma rebelião. Na semana da colheita do trigo, um bando de homens e mulheres se revoltou, ao saber que daquele dia em diante as refeições seriam descontadas dos parcos vencimentos do final de cada jornada. Já não bastava tanta desgraça. A família topázio, e seu mundo inexoravelmente amarelo. Onde tudo parecia improvavelmente real. Uma casa solitária no meio do trigal. Os meninos de cabelos de ouro. As roupas amarelas, o sol a atravessar-lhe literalmente os corpos. Sem que os tornassem, no entanto, translúcido. O vento passava e tangia os cabelos que açoitava o ar. A assoviar um silvo duma nota longa,  cortantemente  indecifrável.
  

Os meninos amarelos, os pais amarelos, da casa amarela. Solitariamente triste. E a mãe de amarelo e preto. Lucas e sua bicicleta sonhavam sonhos que falava de dias melhores. Não importando se fossem amarelos, desde que fosse melhores. Ninguém sabia que parte do mundo era aquela. O gigante de Avor sabia. As horas, nunca, jamais passavam. O sol estatelado no meio da planície ficava olhando pra eles, intrigado. Visivelmente incomodado com a indiferença. Surpreso da capacidade daqueles, de ficarem ali, naquele oco mundão. Sem coragem pra outra coisa. A não ser, viver de amarelo, unicamente.


O pai disse bem assim: ‘Meu filho não é nenhum criminoso, não merecia estar preso.’ Imaginava como era estar preso, sem poder beber aquela abundância de dourado. Temia que acabasse definhando, que adoecesse. Se isso acontecesse, fatalmente morreria, de carência de luz no organismo. Os pensamentos lodosos lhes iram consumir as carnes. No começo, fazia exercícios, rezava três vezes ao dia. Estabeleceu mentalmente a que horas achava que era bem cedo, que hora sentia que era meio dia, e que horas o sol se punha. Não ficaria louco se exercitasse sempre, a mente, os músculos. Era perfeitamente normal, imaginar protuberâncias de amarelo, mesmo no escuro. Conseguia projetar de sua mente, um raiar do dia. A cada manhã na parede lateral da sela, um sol surgindo de mansinho, e seu calor invadindo e clareando tudo. As quatro paredes, e o teto viravam paisagens. Cada uma daqueles quadrantes davam-lhes magníficos cenários de visão. O mar, lá ao fundo, a areia fria, a ressaca, o cheiro de sal, de frutos do mar. Gaivotas voando, andorinhas, pelicanos, mergulhões mergulhando. Ondas quebrando, pássaros piando. Um avião passando lá no alto, silencioso, deixando pra trás flato de calda. Imenso flato de fumaça branquinha. Como estivesse se inventando de laçar o mundo, com um cordão de algodão doce, sem ser doce. Dali a pouco jamais existira. Diluiria como perfume que o ar maldosamente estrangularia. Um navio da marinha mercante, riscando bravamente o horizonte, um nada longe assim. Numa mistura de preto, ferrugem e vapor. Uma ‘maria fumaça’ metida a sereia. Levando no ventre água de coco envasada, doce de leite e goiabada em potes. E umas caixas com uns tubos brancos com o formato cilíndrico que lembrava o pênis humano, mas que não tinha a menor ideia pra que servia. Talvez fossem porta-escovas, ou outra coisa qualquer. Lá ia a nau, com seus homúnculos. Escrevendo com seus diamantes derretidos incrivelmente piscantes, sobre o espelho fluído. Encantando e desencantando peixes, polvos gigantes, que povoaram sonhos de criança.


A barba crescera, tornando ele mesmo noutro. Os cabelos desceram as escápulas. As sobrancelhas arquearam-se acinzentadas. As mãos perguntavam ao rosto: ‘Quem é você?’ 'Não lhe conheço’ ‘Pra onde foi você Rafael?’ Lembrou uma tarde quente na casa de tio John. Ele estava de pé. Na pose que gostava de ficar. Como se fosse tirar um retrato. E Tagor no coração guardava aquela lembrança, a mão esquerda com o dedo polegar pra dentro da calça, os dedos daquela mão encostado no cinto. Fumava. O cigarro entre os dedos da destra, na frente do rosto, aguardando enquanto falava.  O rosto virado pro lado, um meio sorriso no rosto, porque era uma tarde dourada. Uma alegre tarde de sábado. Os cavalos ia trotando sobre o paralelepípedo. Rafael sentara com o encosto da cadeira para frente, numa posição que lembrava um cavaleiro em sua montaria. Os braços cruzados no respaldo. O cabelo até que estava alinhado pra quem sempre negligenciava esse detalhe. Émile esperava que ninguém tocasse, no assunto intocável. Mas como sempre, as forças do universo conspiravam contra desejos escusos. Lucas buscou os olhos de Derick, todo esparramado no sofá, e disse: O rei mandou prender Rafa pra manter-nos ocupados com esse assunto, enquanto maquina sobre como decifrar o mapa do tesouro.


Estava mesmo era no tempo de lembrar que outro problema havia, era verão. Toda manhã lá vinha ele. Inescrupuloso, inditoso, implacavelmente destruidor. O círculo de fogo que devorava tudo que via pela frente. Seria questão de dias, pra que houvesse escassez de alimento. O inferno estava instalado. Com a crise da falta d’água, e alimento, o que seria de todos? Ir pro futuro? Talvez fosse uma boa ideia. Levasse em consideração que a máquina teletransportadora tinha suas limitações. Imagine levar a, um milênio adiante, uma seara de trigal com uma casa amarela, uma montanha de três mil jardas de altura, mais de duas mil cabeças de gado. Sem falar na casa de farinha, as mulas, os cavalos. Ninguém sabia qual seria a reação do gato, do cachorro, dos passarinhos, ao chegar à nova morada, para onde pretendiam ir. Podiam até morrer. Ir pra um lugar que ninguém se arriscava imaginar sequer, onde era.


Aquele lugar Tagor só tinha visto mesmo em filme. Uma película que passara nos fundos do armazém de Seu Cícero. Os meninos todos sentavam no chão batido, úmido. Os fundilhos das calças ganhavam uma mancha de barro de louça. Os adultos sentavam em tamboretes. E os idosos em preguiçosas. O fim do mundo seria daquele jeito? Perguntou-se. O céu jamais merecia tal nome, de tão terrível aspecto. Fumaça neblinando a terra. Chegava a faltar ar nos pulmões só de ver. Uma só plantinha não mais existia. Pra onde olhasse metal pesado, e prédios sujos, pichados com sangue. Como se uma guerra acabasse de ter ocorrido. Cenário de destruição. Lixo por toda parte. E as pessoas caminhavam nas ruas como entorpecidos. Sem saber ao certo o que buscavam. Não cabia poesia ali. Mesmo assim veio-lhe, Manoel Bandeira. Numa aula de português, a professora recitou-o um dia: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos/ quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava/ Engolia com voracidade/ O bicho não era um cão/ Não era um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem.”


Se alguém se cansava de viver, tinha direito a morrer dignamente. Pelos corredores dum hospital, a uma sala era conduzido. Era vestido num pijama. Seria aquela as vestes pra morrer. Era deitado numa cama. Uma injeção letal aplicada nas veias. E enquanto à droga fazia efeito, a sala toda se transformava num mundo maravilhoso, limpo, jardim floridos, água corrente em rios límpidos. Céu azul. Música clássica de fundo, cada vez mais alta. E era o fim, de mestre Lucindo. Enquanto isso, Rafael Bertrand, permanecia no ventre da baleia de aço. Bem sabia, da solidão, do escuro, das trevas onde se achava. No calabouço de sua alma, uma  certeza tinha, que sozinho não estava. Quanto tempo mais iria permanecer ali? Não sabia. Tempo suficiente, pra reviver, tudo o que de errado, até então, fizera na vida. Rafa o melhor amigo de Lucas, assim como o Jonas da Bíblia. experimentava o amargo gosto de entrar na escuridão de si mesmo.


Fabio Campos, 28 de outubro de 2016.

P.S. A gravura que ilustra este episódio é da praia de Porto de Pedras (Fevereiro de 2007)


      

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