Uma mosca varejeira, incômoda
esvoaçava sobre as costas da mão. Descarnada, ossuda, de veias grossas do velho
homem. Donde se desenhava rios subterrâneos, em alto relevo, formando mapa hidrográfico,
que levavam sangue verde, pra dar vida aos dedos. Impaciente vinha a outra mão, violentamente
bater sobre a primeira. Vã tentativa de por fim a vida alada do inseto. O
segundo menino da bicicleta olhava o infinito a sua volta. Observava a luta das
mãos do velho pai, contra a mosca. Os dois de cócoras. Aguardavam chegar a vez
de pegar água no açude. Eram os últimos da fila. Em silêncio o menino pensava.
Em que pensava?
No dia que cometera o maior
delito, de sua outra vida. No tempo que morava na cidade. E ia sempre a casa do
menino da rua de trás. Um crime cometera. Um roubo cometera. Enquanto o amigo
tomava banho. Sob a blusa, escondeu figurinhas do álbum de jogadores das seleções
de futebol, de todo o mundo. Saiu às pressas, sem esperar que o amigo retornasse.
Pareceu que, ele jamais percebera, ou se percebeu, nunca tocou no assunto. Durante
toda a infância cometeria outros pequenos delitos. No pomar
da casa das sete mulheres roubo de tamarindo. No quintal do promotor de justiça furtara cágados. Do
jardim do doutor esculápio, figos surrupiados. Das árvores do paço municipal, amêndoas.
Mas nada fora tão grave quanto as figurinhas do álbum do amigo, da rua de trás.
Até porque para os outros crimes houvera álibis perfeitos, cumplicidade dos
demais, pequenos delinquentes. Achava que aquilo não passava de um sonho. E que
aquele menino nunca, jamais fora ele.
E viria a semana santa daquele
ano, e haveria a necessidade de se confessar, de contar pro padre, os pecados.
E sempre escondia as faltas cometidas sozinho. Contava somente os pecados na companhia de outros. Pecados em grupo, dava pra dividir a culpa. E
o sol sabia de tudo. Aonde fosse ele estava lá, como que dizendo “Eu vi tudo”.
O sol era como Deus. Talvez fosse o próprio. Dando vida, e tirando, na hora que
achava necessidade, de uma, e de outra coisa. Definitivamente não contaria
aquele pecado. Afinal não fora ele que cometera.
“Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava”
Em 1973 Tagor estava no Chile. Morava lá. O rigoroso inverno chileno,
nada comparável ao governo de Augusto Pinochet que acabava de subir ao poder. Lembrava
agora mesmo de como era desesperador perder a sensibilidade dos dedos. O gelo
invadindo lentamente o corpo. O frio como que dizendo: “Vou te matar, mas não
tenho pressa. Farei isso bem devagar, para que saibas o que é morrer de frio”.
Era onze de setembro daquele ano. O golpe militar, as ruas, as casas, as mentes
tudo sendo invadido abruptamente. Assim como o frio sem o menor remorso, sem
dó, sem culpa. Desbotando a coragem ou qualquer tipo de entusiasmo de quem quer
que fosse. Salvador Allende caindo, vertiginosamente caindo. Despencando dos
púlpitos das praças, dos brasões incendiados. Nos retratos das repartições
rasgados. Já não mais a olhar sereno pro futuro. Não havia mais futuro. Debaixo
das patas dos cavalos, o socialismo sufocado, pela flâmula, pelas armas tripudia
do soldado infame. Os ideais de igualdade esmurrados, tudo e todos terrivelmente
feridos de morte. E o som de uma gaita silenciaria, e não mais acalentaria uma
fogueira, que agora queimava, ardendo em frias chamas, os corações dos pobres gigantes.
E as submetralhadoras a vomitar projeteis varando incólumes os peitos varonis.
Enquanto os olhos vendados da justiça, apenas ouvia, nada via. Não via o derramamento
de sangue, os paredões dos fundos dos prédios públicos lavados de heroísmo,
lavados de sangue de mártires. Lá do alto a águia com suas asas abertas. De
ódio, puro ódio abria o bico.
“Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português”
O outro menino da bicicleta, morava no Brasil. Era o que as moscas perturbavam
a ele e ao velho pai. Morava no vale do Cariri, no Ceará. Estava agora sozinho,
de frente a sua casa, de taipa. A mãe e o pai entraram, a buscar água cor de
barro trazida do poço da cacimba. O jumentinho acinzentado e seu sinal, uma
bola preta, na parte interna da pata direita. E estremecia o couro naquele
ponto, toda vez que uma mosca pousa lá. De repente, do nada, surgiu-lhe a sua
frente um menino. Pelos trajes devia ser um indiano. Mas o menino do sertão não
sabia disso. Sem dizer palavra, apenas o observava. E sem que saísse nada de sua boca perguntou seu nome. Entendeu que estava tendo uma visão, e que o
menino estranho, de roupas coloridas e turbante, falava sua língua penetrando-lhe
o pensamento. Ouvia sua voz, dentro da sua cabeça. Pensou em correr, fugir
dali. Mas pra onde iria? O menino da visagem repetiu: “-Meu nome é Tagor. E o
seu?”
“Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
O tango argentino me vai bem melhor que o blues”
Mas, e como eram as bicicletas naquele tempo. A “Monareta” tinha uma
espécie de torneira no meio do quadro. Nunca soube exatamente pra servia aquela
torneira. O menino do sertão queria tanto ter uma bicicleta. Mas tinha que ser
daquelas de adulto, uma “Monark”. Não queria uma “Caloi” da propaganda de natal. No
sapato o bilhete: “Papai não esqueça da minha Caloi!”. Uma daquelas nunca lhe
enchera as vistas. Bicicleta de almofadinha. Precisava de uma que aguentasse o
trampo, a lida pesada da vida no campo. Tagor nada prometeu, muito menos dar-lhe uma
bicicleta. Não entendia de onde o menino tirara aquela ideia que ele talvez
fosse uma espécie de gênio da lâmpada. Não, não estava ali pra realizar desejos de ninguém. Sua missão era bem mais complexa. Uma coisa era certa, não
tinha pressa. Precisava acompanhar o menino na sua lida diária. Precisava conhecê-lo
melhor. E descobrir se nele encerrava os pré-requisitos para a missão a qual
deveria empreender, juntos. Tempo era o que mais tinha no momento.
“Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Eu quero que esse canto torto
Feito faca corte a carne de vocês”
O homem de terno, disse a mulher ruiva. Eu vim até sua casa com uma
missão, digamos assim, bastante desconsertante. Mas infelizmente terei que
fazê-lo. E qual seria essa missão? Quis saber. Simples: matá-la. E sacando uma
pistola automática, provida de silenciador, efetuou três disparos. E o som era como um pedaço de pau seco quebrando. Os projeteis
penetraram o tecido vaporoso das vestes da mulher. Imediatamente viraram três
rosas de sangue: uma no colo, outras duas, no peito e abdômen. Antes que caísse
foi amparada, e cuidadosamente depositada no chão, por seu próprio assassino.
Fabio Campos, 18 de Novembro de 2016.
*P.S. Este Episódio está entremeado da música de Belchior "Palo Seco"; do espanhol, quer dizer 'pau seco'. A gravura é do próprio autor, com sua aluna Carla Dantas, no dia do 'halloween' deste ano.
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