Sinais (16º Episódio de T.F.)

Senhora Júlia se encontrava sentada sobre uma pedra imensa. A pedra era parte de um lajedo, que se estendia galgando altura, as suas costas. Ainda trajava as mesmas veste com as quais havia sido assassinada. As manchas de sangue, no entanto, não mais havia. Os braços mantinham-nos apoiados sobre as coxas, o tronco se insinuando sinuoso, esbelto, ereto. Serena e contemplativa tinha a face voltada pro horizonte, a sua frente. Um imenso deserto de areia fina donde podia se vislumbrar muito longe, onde a vista não conseguia alcançar. Um mar de águas calmas, feito de um azul profundo que cintilava, sob um céu lilás, sem nuvens, sem estrelas, sem nada. Vento de nenhuma direção soprava. 

De modo que seus belos cabelos praticamente não se moviam. Dando-lhe aparência de uma gravura, uma fotografia antiga. Como o cartaz de um filme, da década de quarenta. Sem brilho, quase sem cor, estática, emblemática, taciturna, porém pragmática. Num clima de mistério, envolta. E o que mais parecia era não haver ali, qualquer outro tipo de vida, além daqueles dois: Júlia e senhor Edgard. No entorno e talvez a milhares de quilômetros e por uma eternidade inteira ninguém além deles. Dava perfeitamente para perceber a falta de alguma coisa, que talvez nenhum deles soubesse explicar direito o que. Talvez houvesse naquele lugar ausência de saudade, de tristeza, de melancolia. Outros sentimentos físicos intrínsecos a vida humana não houvesse. Dava pra perceber ali, não havia calor, ou frio. Percebia-se a ausência de insetos, do pipilar de pássaros. O soprar da brisa, o vento, a poeira da areia do deserto. Que lugar era aquele, meu Deus?

Senhor Edgard estava como que ocupado com um livrinho vermelho, um pouco maior que um maço de cigarros. Com uma caneta, nele fazia anotações. E só agora dava pra perceber que havia uma lua que era a fonte de luz que iluminava todo o cenário. Senhora Júlia com uma pergunta desconcertante quebrou o silêncio: -Posso saber porque o senhor matou-me? Segurando o aro dos óculos com a mesma mão que segurava a caneta, o homem de terno impecável e chapéu Prada, com a calma que lhe era peculiar respondeu: -Dona Clarice, a senhora não está morta. Senhora Júlia entendeu menos ainda. Isso mesmo, seu verdadeiro nome é Clarice, já eu chamo-me na verdade, John, mas isso não explicarei agora. Vamos aos fatos. Naquele instante o ambiente se transformou numa espécie de sala de projeção. Os dois agora estavam comodamente sentados em cadeiras de encosto almofadado, e repouso pros braços. Lado a lado posicionados sobre um tablado como um palco de teatro. E na tela apareceu a cena do crime. Lá estavam os dois revivendo os momentos que ocorrera o suposto assassinato da senhora Clarice. E senhor John disse: -Observe quando eu saco a pistola, você não vê, mas logo de detrás da cortina um homem, senhor Willians, dispara um dardo que atinge seu pescoço. Esse dardo contém um tranquilizante que fez com que você entrasse em transe. Tudo o mais que você viu. Os tiros, o sangue na roupa, eu lhe amparando até você dar o último suspiro, tudo não passou de ficção. Tudo encenação que induziu a sua mente a crer que aconteceu de verdade.  

Senhor John continuou: Como havia combinado de participarmos de um jogo aonde tentaremos confirmar uma hipótese que lançamos, de que os fatos se sucedem de modo a repetir-se. Isso incluirá uma volta através do túnel do tempo. Sou arqueólogo, durante uma expedição na Cisjordânia em 1972 minha equipe e eu numas escavações no delta do rio Jordão uns escritos que devidamente traduzidos levou-nos a uma descoberta incrível.    
A casa dos meus avós, onde eu sempre passava as férias. Assim como todas as casas do mundo. Todas carregam uma fonte de energia que vai sendo transmitida de geração a geração. E todos os acontecimentos do passado tendem a se repetir no futuro. De uma forma ou de outra elas tornam a acontecer. Vamos reconstituir o caso da morte dos meus avós: Jairo e Letícia. O casal de velhinhos encontrados mortos no quarto, deitados na cama, supostamente degolados. E que a polícia dera por encerrada o caso, como duplo suicídio. 

Vamos voltar lá dentro da casa. Não nos dias atuais, mas em 25 de março de 1945, o dia fatídico para meus avós. Descobri que o casal de velhinhos encontrados deitados na cama mortos, não eram meus avós. Apenas fisicamente pareciam com eles, mas sei como tudo ocorreu. E onde meus avós se encontram neste momento. O casal encontrado mortos na cama se chamava Heloísa e Pinheiro. Naquele dia também foram eles pro lago pescar, era uma manhã ensolarada. Meu avô fez uma fogueira na areia a beira d’água. Acamparam naquela noite, a beira do lago. A barraca de lona existe até hoje. E ficaram até altas horas olhando as estrelas, e conversaram muitas coisas, sobre os anos de casado, sobre os filhos, as conquistas, as dificuldades que enfrentaram até chegar ali. Não era um casal tão velho assim, vô Jairo, também Pinheiro contavam com 57 anos, vó Letícia, assim como Heloisa 48. Dali uma semana fariam aniversário de casamento. Haviam programado uma reunião de família pra comemorar os 30 anos de casados. Nada levava a crer que quisessem morrer.  Nenhum um nem outro casal, vontade ou motivo teriam pra cometer suicídio. Nada na vida deles levava a isto. Um surto psicótico, um histórico de esquizofrenia, talvez vindo dos ancestrais, nada. Aquilo era um desafio pro mais experiente perito criminal, ou estudioso da psique humana.  

Senhor John tentava explicar pra senhora Clarice o mistério, a descoberta feita nas escavações do deserto, lá no oriente médio. Quase que acidentalmente descobrira o que estava para revelar. Utilizando um raio de luz infravermelho dentro da câmara onde havia um sarcófago, encontrou o que supunha ser a chave para o enigma de tantos casos de fatídicos, fatos ocorridos sob estranha circunstância. Em especial os que aconteciam dentro das casas, no meio das famílias. Começou a juntar o quebra-cabeça a partir de uma foto de sua avó, ainda jovem, trajando um vestido vaporoso que deixava a mostra boa parte das espáduas e colo. Chamou-lhe atenção a incidência de três sinais de nascença. Pintas pretas destacadas na pele alva. Mas o que teriam mesmo 3 pequenos sinais a ver com os assassinatos? 

O fato de que nas gerações anteriores dos avós de senhor John, uma sobrinha, Cíntia Flores, também apresentava os sinais sobre a pele, com a mesma simetria, só que no abdômen e ventre. Um tio de sua mãe Tião Dionísio, possuíra os mesmos sinais, sendo que na coxa ventre e virilha sempre estabelecendo semelhança na simetria. Ao ligar os sinais entre si, indo de um ponto ao outro, traçando linhas retas tinha-se a formação de um desenho que parecia uma taça, uma tulipa talvez. Senhor Pinheiro e Heloísa, nenhum dos dois possuíam os sinais. O mais interessante senhor John deixou pro final, levou Clarice até a sala de sua casa, não fisicamente, mas em transe. Seu corpo se encontrava mesmo, deitado numa cama de um laboratório de ciências, em algum lugar de Oklahoma. Apagou as luzes e ligou um feixe de luz que deixou o ambiente numa penumbra azulada. Acionou um dispositivo que encheu a sala duma fumaça, que se tornou igualmente azul, imediatamente no centro da sala, pairando no ar três pontos vermelho intensamente brilhantes. Os mesmos sinais que apareciam sob a pele, dos corpos dos antepassados do senhor John, estavam lá. No meio da sala, em três dimensões pairando no ar.



Fabio Campos, 26 de novembro de 2016.

P.S. A gravura que ilustra este episódio é de Santa Beatriz da Silva e Menezes. Comemorada em 01 de setembro.

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