A Hidra de Luanda (17º Episódio de T. Fashall)

O rio secou. Os olhos d’água secaram. Os olhos de Odiba também secaram. Duas lágrimas sulcaram dois rastros no seu rosto empoeirado. A pele de tálamo ressequida, amorenada. Os braços criaram uma crosta de pó ceramizado, luzidio. Duma cor persistente que ia em todo canto, nas paredes da casa. No terreiro de casa, de mesma tonalidade também a cerquinha do chiqueiro. Lá acolá, calado, que nem porcos tinha mais. Estavam todos mortos. Morreram de fome. O pote de barro, a única coisa gorda naquelas redondezas, ainda que oco, reluzia sua barriga avantajada. O tecido da saia de Amérida, das poucas coisas que ainda tinha alegria por ali. Os meninos homens sabiam de histórias e causos antigos. De seus antepassados, e que tanto prazer tinham em contar. Especialmente aos pequenos, para que levassem a diante suas raízes, suas tradições, seus costumes, suas origens. E nunca sonharam possuir bicicletas, simplesmente porque jamais tinham visto uma.

Zanzi-bar caiada, a refletir pureza nos seus palácios. Nas palmeiras que escalavam escadarias, peitoril de casas e fachadas. O mercado das especiarias. Todos ali, sabiam de um mundo subterrâneo. Por onde ratos e cobras humanas sobreviviam, e negociavam vidas. Negociavam ouro, drogas, marfim, animais exóticos, e gente. Comprar e vender negros, era comércio rentável. Negro mercado, mercado negro de esgotos fétidos. Rua dos porcos. Os curtumes a céu aberto. A atraírem urubus pros altos telhados dos sobrados. O bate bate das peças de couro nas pranchas encardidas. Um demônio chamado Delirium ficou olhando pra baixo, mirando um mortal dentro da sala. Do beiral de outra casa em frente olhava. O homem sentado à mesa lançou impropérios contra aquele, sem sequer o visse. Sem mesmo saber que o deletério, gosmento lá estivesse. Assim que tocou no livro sagrado, o demônio fez menção de alçar voo, mas suas patas asquerosas, com garras de abutre, resvalaram nas telhas do beiral, lançando fora algumas delas. Uma dúzia de telhas foi se espatifar na calçada. As palavras, feito setas certeiras acudiu o homem de terno. O chapéu continuava no cabide. A mulher admirou-se da cena. E adivinhando o que acabara de suceder, comentou que as palavras santas com seu poder acabara de os salvar. Nem sequer foram proclamadas, apenas expostas ao ser ignóbil e espantou-o pra longe deles.

Tagor estava sentado a uma mesa. Era mesa grande feita do tronco serrado ao meio. Um caule de embodeiro planta nativa da África. Mesa larga, de lastro grosso, rústica, como tudo naquele lugar distante. A ilha africana habitava homens, espíritos e cenas belíssimas, como as mulheres que praticamente ninguém via.  A mesa de madeira nativa, liberava junto com a lignina, um odor bastante aromático. Sedutor como aquela tarde a beira mar. Um copo de vidro, passado de vinho tinto. Ainda mais inebriante, com seu perfume acre doce seduzindo os rostos, as sombras, os quintais. Um brinde a vida, a saúde, e as amizades. Cesar com seus olhos de pedra olhou pro céu, pintando ainda mais tudo de azul. E disse que todos ali, precisavam saber duma história que acontecera com ele, da última vez que ia a caminho de Luanda. O chapéu de tala branca resolveu tirar da cabeça, e os longos fios de cabelo negro ficaram colados no suor da testa alva. Deu-lhe aparência da imagem de uma estátua da deusa hidra que havia no palácio do reino dos macacos.

A mãe de Tagor estava lá longe, sentada numa cadeira de vime. Debaixo dum coqueiro baixo, olhava em direção ao mar. Tinha nas mãos uma espécie de novelo de pano de linho branco, coberto de inscrições feitas com linha preta. A cadeira forrada com uma almofada recheada de algodão. Coberta com um tecido decorado com desenhos de plantas de folhas largas e grandes,  uma cabeça de arara vermelha no respaldo. Tudo aquilo fazia a festa da tarde de sol. A planta do desenho era uma “Welwisschia mirabilis” que só existe no deserto do Namibe, em Angola. É planta rasteira, de caule lenhoso que não cresce. Possui raiz enorme e duas folhas em forma de canoas compridas. Com o tempo as folhas podem atingir dois metros de comprimento, e se esfarrapam nas extremidades, dando ideia de tentáculos. De incrível longevidade. Tinha delas, que conseguiam viver mil anos de vida. Tagor tinha esperança de um dia descobrir como conseguiam sobreviver tanto tempo num ambiente tão hostil como o deserto. E a água de que necessitavam como conseguiam? Isso era um segredo que não demoraria muito a descobrir.

Cesar passou a contar a aventura que vivera, na estrada que um dia o levaria a conhecer Dacar. No meio do deserto de Namibe ocorreu, no terceiro dia de jornada, uma tempestade de areia. Um dia e meio tiveram que ficar debaixo das lonas, esperando a tempestade passar. Quando veio a calmaria o deserto havia se transformado, totalmente. Onde antes só areia havia, uma planta estranha aflorara por toda parte, a hidra de Luanda. Nunca ninguém tinha visto nada igual. O deserto agora aqui e acolá recoberto de uma planta que possuía duas grandes folhas apenas. Plantas que encerrava uma terrível maldição. Os camelos que se aventuraram comer dela, morreram de morte esquisita. Ao simples toque na erva maldita e caiam desfalecidos espumando até darem o último suspiro. A carne escurecia, apodrecia e se consumia em questão de segundos. Só o esqueleto do quadrúpede de casco bipartido restara. Atestando o efeito maléfico do maldito vegetal, surgido das entranhas do deserto. Os tuaregues da caravana de Cesar entenderam que a planta altamente venenosa devia ser evitada. Algo ainda mais terrível estava para descobrir. Ao cair da noite sob o vento frio um escravo da caravana levantou-se para aliviar a bexiga. Ao afastar-se do acampamento foi ao encontro de uma daquelas plantas maldita. Gritos aterrorizantes foram ouvidos naquela madrugada. A hidra como que dotada de inteligência com seus tentáculos agarrara o pobre negro e devorava-o vivo. A cada ponto que as farpas das pontas das folhas tocavam a carne se diluía. Feito ácido corrosivo a seiva consumia as carnes do pobre homem até transformá-lo num esqueleto, totalmente.

Odiba e Amérida sobreviveram àquela viagem de travessia do deserto. Tagor voltaria lá, exclusivamente para pesquisar aquela planta carnívora. Antonieta passou o mês de maio na companhia de João, Marcos e Lucas. Ocuparam a casa do vale de Omino no Sudão. Antonieta de tanta preocupação adoeceu. Caiu de cama, teve febre e alucinações. Teve que ser levada ao campo de concentração dos soldados ianques. Os que combatiam contra os radjistas. Para os quais aquela tratava-se duma guerra santa. mulçumanos contra católicos. Os boinas verdes odiavam este tipo de ideologia. Lutavam por outro ideal, morreriam se preciso fosse, em defesa de outra causa, o maldito patriotismo. Antonieta tomou remédio americano. E teve visões e alucinações. Sentada na maca do hospital viu Tagor avançando no deserto montado num cavalo de fogo. A espada sibilando no ar. O rosto crispado, a boca aberta, os dentes a mostra. De repente areia começou a flutuar, e era como cristais brilhante, como puro ouro em pó, a soar como milhares de sininhos. Num som muito bom de ser ouvido. E agora com seus lindos seios amamentava João que dormia no seu colo. Alisava seus cabelos. Figos e damascos desenhados num tapete pendurado na parede, de repente começaram a sair da estampa e se materializavam e avançaram em sua direção. E mesmo sem comê-los, sentia-os tão saborosos.

Senhor John e senhora Clarice ainda estavam na sala. Pra ela, era difícil, nem um pouco fácil assim, acreditar que simples sinais de pele, tanto poder exerciam sobre as criaturas. Sinais seriam na verdade, decodificadores, espécies de senhas que abriam caminhos pra que mensagens vindas do espaço pudessem ser decifradas. Civilizações distantes os possuíam. Lá no cosmo, onde civilizações intergalácticas habitavam sinais eram elementos identificadores de seres semelhantes a nós. Tagor, na sua terceira viagem ao planeta vermelho. Ao aportar, foi reconhecido por um sinal, que tinha na parte interna do lóbulo da orelha direita. Foi o que o salvou, pois o príncipe Godar, da nação marciana semelhante sinal possuía.


Fabio Campos, 04 de Dezembro de 2016.


P.S. A Gravura que ilustra este episódio, é um flagrante captado com câmara fotográfica, numa loja do shopping center de Arapiraca. 

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