Liberta! Libertá! (18º Episódio de T. Fashall)

O homem, de chapéu engraçado, de três pontas. Botas canos longos, o cinto largo guarnecido duma espada embainhada. De fraque, com duas pontas nos fundilhos, era Tagor Fashall. A barba morena, o brinco na orelha direita. Buscou o que havia a sua volta. Muito queria entender o que se passava no seu entorno. Perdera a noção de onde se encontrava, naquele exato momento. Talvez de volta a França, do século dezoito. As carruagens, as carroças, as mulheres com suas saias longas, de tecido alvo, os chapéus de pano, a torná-las imensamente belas, indubitavelmente sérias, indiscutivelmente fêmeas. Ruma de cabritos com seus incômodos testículos gigantes. Com dificuldade avançavam, puxados por cordas, pra serem vendidos no mercado. Patos, marrecos, porcos, junto com pessoas transitavam pelas estradas, nas ladeiras e ruelas de Étole Chavalier.

Da onde estava dava pra ver o frontispício do mercado, o formigueiro de gente. No alto da ladeira. A bandeira de França, tremulando no alto do mastro, à porta da Cadeia Publica. Um relance pra direita, num olhar e a torre da catedral. Depois do jardim de pinheirais ficava o Manicômio judiciário, o Instituto Médico Legal e o Cemitério de São Judas Tadeu, só que a imagem lá colocada era de Judas Escariotes. Pictórica cena, tantas vezes reproduzidas nas telas dos disciplinados estudantes de belas artes, da famosa Casa das Artes de Paris, que com vigor se aventuravam na árdua, porem prazerosa, tarefa de retratar o cotidiano.  
    
Uma casa amarela de esquina, ali funcionava o mais conhecido bordel da vila. Rosas tristes na sacada debulhavam seus botões, entre melodias vulgares, regadas a vinho tinto safra 1830. Vicente e Marcelo eram filhos de Seu Antônio, desde pequenos, até virarem homens feitos foram levados pra casa de prostituição. O velho pai era dono de uma fábrica de queijos, feitos com leite de cabra, que muito dinheiro rendia-lhes. A bebedeira, a jogatina, a vida mundana já se tornara um vício. Os filhos se criaram aprendendo do próprio pai a vida desregrada que levava. Vicente e Marcelo acabaram apaixonando-se por uma prostituta, chamada Rosalice. O amor possessivo falou mais alto, e decidiram disputá-la num duelo de esgrima. O embate entre os dois irmãos ocorreria às cinco horas daquela tarde, no parque dos Marrecos, região do subúrbio de Paris. O jardim dos marrecos era lugar aprazível, bom para morrer. Ideal pra uma cena de amor, miseravelmente trágico, dramaticamente violento. Os amantes que a tantas orgias haviam já se entregado. Amavam-se a três, em volúpias e frenesis sexuais. Agora, porém, cada um queria da dama da noite exclusividade. Já não aceitavam dividir a flor do delírio, o sedutor sexo de Rosalice entre três, não mais fazia sentido. Não mais queriam compartilhar pra dois o que podia ser só de um. Foram pontuais, ao compromisso, o juiz, as testemunhas, os potenciais fraticidas. Matariam sem culpa, somente por amor. Incondicional amor, inconcebível amor, brutal amor, que mata. O palco do embate, um imenso charco, considerado mal assombrado. Um velho mosteiro de janelas triste, onde um dia um missionário enforcara-se pendurando-se no batente de madeira, olhava pra lá. Saltou ao encontro da morte. Ó fria, cruel e implacável morte! Agora passeava e ciceroneava outros espíritos, os que quisessem conhecer o parque. Tinha a vida inteira pra isso, melhor dizendo, a morte inteira. Todos que sabiam da história quando olhavam pra lá, mesmo não tendo presenciado a cena viam. Qualquer que olhasse conseguia ver, o frade pendurado, cabeça pendida pra frente, os braços estendidos, as sandálias andando no nada. Na imensa janela. Aquele corpo balouçando ao vento, mesmo não estando mais lá, um recado deixava aos viventes: morrer causava imensa angústia.

Tagor agora, estava com sua mãe. Andaram pelo paço. Conversavam conversa de mãe e filho. Entraram na catedral. A igreja abriu seus longos braços a abraçá-los. Dois, dos meninos das bicicletas estavam com ele. Os meninos os acompanhavam, só que em outra dimensão. O terceiro não estava, porque era ele próprio. Sua mãe dirigiu-se pro altar. Movia-se calmamente, suavemente, como que deslizando, como se não tocasse o chão. Barulho nenhum se escutava. A não ser dos pardais que chilreava nos galhos dos arbustos. A fitarem de lá fora, os fiéis, os santos, os anjos e os espíritos maus, dentro da nave.  De onde estava Tagor, fitou os órgãos com seus imensos tubos de ferro, aço e madeira, feito pelotões. Disposto, dependendo da hierarquia. E do valor que tinham de cima para baixo. 

Aproximavam-se os dias das festas de natal. Uma lapinha esmeradamente montada ao lado do altar-mor. Entre o púlpito e o confessionário. Pedras de verdade foram dispostas a dar ideia duma imensa gruta. Um manancial de água em miniatura, vertendo água azul espumosa, dançante, em córrego de faz de conta. Estatuetas bem trabalhadas, representando um pastoreio, ovelhas, cabras e cabritos. Uma madona ao centro com olhar angelical, ladeada de um José, calmo, resignadamente sereno nas feições. Os três magos com seus presentes na mão. Um menino de colo com ar de majestade, sem parecer ser. Muito embora, como que aceitasse ser amplamente adorado por todos: vivos, não vivos, espíritos bons, espíritos maus, gente, não gente. Não importava se encima, embaixo, ou por sobre a terra, todos o adoravam.

Tagor inquieto, embora não se sentisse, mesmo assim estava. Era da sua natureza, do seu espírito aventureiro. Ainda que num ambiente de tanta paz. Pensante, caminhou até a parte alta da nave. Deu-se conta e já havia escalado os andares, chegando à parte superior. Sua mãe agora era um ponto branco de joelho, lá embaixo, no altar, tão estática quanto o Cristo pendido no madeiro, como se merecesse estar lá, para sempre. Pagando pelos pecados dos mortais. Adornado a todo instante pelas ave-marias. Debulhadas nas contas do rosário, de ave-marias de dona Maria do Rosário. Rosário encaliçado, sofrido, ensebado, suado. Sabendo quão demorada seriam as rezas da mãe, o filho vagou pelo interior do templo. Mais um pouco e alcançou a torre. Lembrou-se da última, e única vez, que estivera ali. Era criança, ainda. Devia ter seus seis anos de idade. Quanto tempo se passara. Tanto medo tinha, e segurava com tanta força a mão do pai, que chegava a doer. E o pai sorria, percebendo o temor do menino pedia que se acalmasse. Por uma pequena janela via a vila de Étole Chavalier, de um ângulo nunca antes visto. Do alto. E os aldeões todos não passavam de formigas, nas suas ínfimas vidas. Seu Manoel por certo estaria lá, preocupado com os afazeres do açougue, Seu Expedito tão ocupado com a taberna. Via a si mesmo indo pra casa, ainda menino. As moças de volta da aula de música, diáfanas, libelulavam pelo caminho das rosas. Do alto tudo parecia tão pequeno. Sem nunca avançar o tempo. Tão imensamente descomplicado. Olhar do alto, tornava tudo tão cheio de outros sentidos, outros significados. Na verdade tomavam outra dimensão.
 
De repente Tagor sentiu-se sendo empurrado, não sabendo ao certo se por alguém, se por um vento mais forte que entrara pela janelinha da torre. Só soube que o empurrão fizera perder o equilíbrio. Só sabia que debaixo dos pés, o chão faltara. Sem saber como, nem porque o piso desaparecera de debaixo dos pés.  E eis que agora despencava dentro dum calabouço. Uma espécie de alçapão o levara a tal situação. Sem que desejasse fora encontrar-se dentro dum cubículo de metro e meio de cumprimento, por dois  e meio de largura, e altura. Olhando pro alto dava pra ver os caibros e telhas da torre da igreja. Parecendo a princípio, de inacessível acesso. Tagor tocou o chão, percebeu-o de pedra maciça. Impossível pensar em sair por ali. As paredes rígidas construídas igualmente de blocos de granito. Apenas o teto parecia vulnerável, com suas telhas de cerâmica e caibros de madeira. Teve quase certeza de que, no teto se encontrava sua única esperança de sair daquela tão inusitada prisão. Em vão tentou ficar calmo, pensou com sua espada poderia ferir a pedra. Mas levaria anos para conseguir transpor aqueles músculos de granito, aquela tão rígidas carnes de mármore. 

Pensou em Antonieta, onde estaria agora? Lembrou-se de cada um dos seus amigos. Pensou nos filhos que um dia teria com Antonieta. Nos amigos das bicicletas. Quanto tempo ficaria ali. Uma eternidade se preciso fosse. E tempo teria pra lembrar da vida que levara até então. E se sentisse fome? E se ficasse com sede? Entrou em pânico. Começou a gritar por sua mãe. Dizendo exatamente a palavra: “mãe!” não chamava pelo nome, mas mãe. E batia com força contra o piso. E tinha certeza que a mãe, lá no altar, rezando o escutava. E o tinha como em seu ventre. Certeza tinha disso. A mãe porém, se o escutava não parecia, rezava apenas. Daí a pouco lembrou-se que todo o oxigênio daquele ínfimo ambiente estava por ele sendo consumido. Não demoraria e morreria por asfixia. De repente, Tagor viu. Viu e também ouviu, as telhas da torre sendo destruídas. Garras de uma águia gigante as destruíam.

Era dezoito horas, Marcelo e Vicente já à uma hora lutavam. O sol derramou seu sangue por entre os pomares, por entre os carvalhos, os ciprestes, o musgo rastejante, feito cobra astuta, víbora esgrimista. A tarde literalmente ensanguentada via dois irmãos, digladiando-se, em ódio, por amor devotado a uma prostituta. Os fios de espada arrancando sons metálicos que enfeitavam o ocaso, estupefato de torpor e tragicidade. Lutando e lutando escalaram as ruínas do cemitério, da família de Bastilha. As lápides sorriam, que vã não seria a ira, sabiam. Os dois na mesma escuderia estudaram esgrima, do mesmo mestre aprenderam. Um não sabia mais que o outro. O ódio clamava por um vencedor, por sangue clamava. Haveria de ter um derrotado. Um desvio de olhar, um vacilo seria o suficiente. A ocasião faria o vencedor, e fez. Marcelo, num esquivo mal dado de Vicente, no peito esquerdo cravou-lhe o florete de prata, serpentinando em sangue.


Fabio Campos, 10 de Dezembro de 2016. 

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