O delegado, metido num velho
blusão de couro, do qual nunca se livrava. Ninguém jamais o viu sem ele. O chapéu
caqui, os óculos ray-ban. Enquanto aguardava pra ser interrogada, Elisa,
analisava aquele rosto empapado. Associou-o ao de um personagem do filme “Conan
- O Bárbaro”. Talvez aquele malévolo, que se transformava em cobra durante uma
orgia. O policial assistente, de pé, ao lado do birô. Com ar de desprezo olhava
para os que ali se encontravam. Como sentisse que merecedor não era de ter que
viver tudo aquilo. Voltar pra casa era o que mais queria. E o que mais fazia
era planos, de ir ao mercado do bairro, compraria ração pro cachorro, cervejas,
pilhas pro barbeador portátil. Sempre esquecia alguns compromissos não tão
imprescindíveis assim. Trocar a lâmpada queimada do abajur, comprar cotonetes e
lenços na farmácia, colocar os sacos de lixo pra fora. Tentaria lembrar-se de
não podar muito o pé de Cássia do jardim. A mulher o odiaria por isso. E que geralmente ia pra lista dos
itens “sempre esquecidos, sempre adiados”. Detestava, mas infelizmente, outra
vez, levaria trabalho pra casa. O maldito caso da menina desaparecida intrigava-o.
Levaria aquele caso na mente o resto do dia, da semana, enfim martelaria no
pensamento. Era um jogo de quebra-cabeça, onde as peças não se encaixavam.
Faltavam algumas, sobravam outras.
O terceiro menino da bicicleta,
naquela manhã entrou correndo em casa, vindo avisar que a sua vó estava no meio
da sala estirada, e que sua irmã desparecera. Ainda eram nove horas da manhã daquela
quarta-feira, muito cinza, quando isso acontecera. O dia amanhecera nada normal.
E infelizmente acontecera. Os outros amigos dos meninos estavam jogando bola no
campinho, e nada viram de anormal. A não ser um carro de luxo que ao entrar no
subúrbio chamava sempre a atenção. Parou na esquina e ficou um tempão lá, sem
que ninguém saísse de dentro. Um grupo de meninos que assistia a pelada ficou
observando. Sentado na linha lateral do campo. Olhavam pro jogo, olhavam por
carro. Os que jogavam também, entre uma jogada e outra olhavam. Um senhor idoso
passou a caminho da quitanda, um dos rapazes lá da esquina pediu-lhe que lhes
desse algum trocado. A intensão era comprar um frasco de cola de sapateiro para
se drogar. O velho, irritado com a abordagem esquivou-se. Foi derrubado, um dos
garotos meteu a mão em seus bolsos à cata do dinheiro que achava que havia nele.
Mas só encontraram um canivete, um molho de chaves, uma carteira que só tinha
cartões de apresentação de mototáxis e disk-quentinhas, uns talões da companhia
de energia e da água não quitados, a carteira que dava-lhe direito, como idoso,
de andar nos coletivos gratuitamente, um pente ensebado, sujo.
Esmurraram lhe perguntando onde
escondera o dinheiro, ele nada disse. Apenas esbravejou, tentando levantar-se. O
sangue do seu lábio estourado vermelhou um pouco da poeira da estrada de
terreno baldio. Dona Esmeraldina não sabia explicar direito o que acontecera
estava muito confusa. Só lembrava nitidamente de estar sentada na cadeira da
máquina de costura quando foi arrastada com muita força. A brutalidade do seu
agressor fora tanta, que ela perdeu o equilíbrio, foi ao chão. A dor persistia
na região pélvica. Ela dizia que era dor subindo do ‘vazio’ pra responder na
espinha, que era como ela chamava a coluna vertebral e o baixo ventre. Levou
coronhada de revólver e ficou passando a mão no calombo na cabeça de cabelos
branquinho. Achava que era suficiente o que falara.
A morte já havia visitado
praticamente todas as casas daquela rua. Começando pelo dono da loja de carros.
Nunca na vida ele tinha vendido um carro como no dia que Felix Anderson foi a
sua loja. Disse: “Eu quero aquele carro”. E como demoraram a atendê-lo
simplesmente entrou num que estava na vitrine estourou a vidraça da loja, e foi
se embora guiando seu mais novo e único automóvel, jamais adquirido na vida. Um
talão de cheques inteiro no valor das prestações deixou assinado no birô da
concessionária, e foi-se embora. Os cheques nunca seriam compensados, não tinha
fundos. E dona Júlia, quase quarenta anos depois diria: “Como eu queria ter um
carro daqueles. Antes que venha à morte.” Tagor disse-lhe que mais do que um
carro, melhor era andar a cavalo. Viajar de carruagem, atravessar o mar de
navio, sangrar as nuvens de dirigível. Justo ele, que já havia feito viagens em
todos aqueles transportes. Dona Júlia disse que quando casara foi da igreja pra
casa à cavalo. Mas não podia desviar do foco. Sua irmã havia desaparecido e a
vila de Étole Chavalier estava afundando. Como assim afundando? Isso mesmo, uma
equipe de agrimensores contratados pelo condado. Com seus teodolitos e varas
milimetradas puseram-se a fazer medidas até conseguirem as provas. Do alto do
morro mais alto do entorno da vila dava pra perceber, algumas montanhas nunca
antes vistas daquele ponto agora estavam visíveis porque outras elevações
baixaram de altitude. O governo teria que tentar reverter a situação. Enfim
saber o que estava acontecendo pelo menos. Do jeito que estava não dava pra
continuar. A vila inteira iria desaparecer, caso se confirmasse aquela teoria.
E ainda mais as profecias de um louco que atendia pelo nome de “Candeeiro” que
apregoava em praça pública que a vila estava afundando por castigo, pelos
pecados dos aldeões, pelas falcatruas do prefeito, pelas sevícias das mulheres
mundanas, dos ladrões e viciados em jogo e pelo uso de drogas. E anunciava em tom
profético: “Arrependei-vos! Bando de serpentes! O fim está próximo!” Lembrava em tudo o batista bíblico.
O policial, dentro da viatura. Encontrou
Tagor quando ia pro subúrbio, parou, desceu. Ficaram conversando. Disse que tinha
saudade do tempo em que era jovem, que estudara na escola de freiras. Falou dos
amigos de infância, e que alguns não alcançaram futuro promissor. Lembrava com
carinho de cada um deles. João, o filho do pintor, era excelente jogador de
futebol, mas não sabia que fim levou. Wilson, tornara-se policial como ele, mas
teve diabetes aos quarenta. Não se cuidou. Nem um tipo de dieta, teve gangrena,
morrera recentemente. Manuel havia, a cinco anos, num final de ano como aquele,
ligado pra ele, desejou feliz natal, feliz ano novo. Pela voz deu pra perceber o quanto
estava bêbado, mas também muito emocionado. Apostaria que ao desligar teria
chorado. E não mais tornou a ligar. Lamentava pelos que não absolveram os ensinamentos
mais úteis de seus professores. E não sabia dizer exatamente, como
conseguira chegar a ser policial. Considerava-se um homem de paz, e na
profissão errada, talvez. Sabia que os dias de caserna estavam contados, em
breve iria pra reserva. Ultimamente sonhava todos os dias com a aposentadoria.
Os dias violentos, traumatizantes, quando era jovem e afoito ficariam somente
na lembrança. Não se orgulhava muito do que muitas vezes tivera que fazer.
Bater, bater, agredir, prender, bater. O delegado com os lábios, fazia um bico
de preocupado. Assim fazia toda vez que era obrigado a pensar. Quando estava
jogando baralho, principalmente quando estava perdendo, fazia aquela cara. Por
detrás dos óculos ninguém sabia o que seus olhos diziam.
Tagor descobrira um invento
interessante. Depois de alguns dias fabricando-o, nos porões do seu laboratório
na rua do Candelabro subúrbio de Étole Chavalier, eis que ficou pronto. A princípio
concebera-o como um aparelho de refrigeração portátil. Devia servir para baixar
a temperatura do corpo. Nos dias de calor intenso de verão. Uma espécie de
dínamo em miniatura, com uma pequena reserva de gás que cabia acoplado ao
chapéu. Ao ser acionado criaria um campo de ar refrigerado entorno de quem o estivesse
usando. O dispositivo também teria a opção vapor quente, para o rigoroso
inverno francês. Pra se testar a eficiência da geringonça teria que esperar
alguns meses. Nada, no entanto, impedia de ver como funcionaria ainda que fosse
outono. Ao usá-lo Tagor faria uma descoberta incrível. O dispositivo deixava-o
com o poder da invisibilidade. Ao passar em frente a barbearia simplesmente não
conseguiu ver sua imagem refletida na vidraça. Os transeuntes não davam conta
da sua presença. Mas toda as células, moléculas, átomos, sangue e órgãos do
corpo permaneciam no mesmo estado de matéria. De modo que logo descobriria isso,
ao colidir com um dos meninos da bicicleta. O menino ficou estupefato ao
perceber que batera num obstáculo invisível. Pior, algo que além de não ver,
soltara um palavrão.
O que importava no momento era
saber onde estava sua mãe. Outra vez veio-lhe o rosto de sua tia entrando na
delegacia, para contar ao delegado o ocorrido. E ele ali, apenas um menino
frágil, olhos arregalados, indefeso.
Fabio Campos, 02 de janeiro de
2017.
P.S. Gravura que ilustra este episódio, encontrada aleatoriamente na internet. Autor: desconhecido.
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