Outono de Tagor (19º Epísódio da Saga de T. F.)


O delegado, metido num velho blusão de couro, do qual nunca se livrava. Ninguém jamais o viu sem ele. O chapéu caqui, os óculos ray-ban. Enquanto aguardava pra ser interrogada, Elisa, analisava aquele rosto empapado. Associou-o ao de um personagem do filme “Conan - O Bárbaro”. Talvez aquele malévolo, que se transformava em cobra durante uma orgia. O policial assistente, de pé, ao lado do birô. Com ar de desprezo olhava para os que ali se encontravam. Como sentisse que merecedor não era de ter que viver tudo aquilo. Voltar pra casa era o que mais queria. E o que mais fazia era planos, de ir ao mercado do bairro, compraria ração pro cachorro, cervejas, pilhas pro barbeador portátil. Sempre esquecia alguns compromissos não tão imprescindíveis assim. Trocar a lâmpada queimada do abajur, comprar cotonetes e lenços na farmácia, colocar os sacos de lixo pra fora. Tentaria lembrar-se de não podar muito o pé de Cássia do jardim. A mulher o odiaria por isso. E que geralmente ia pra lista dos itens “sempre esquecidos, sempre adiados”. Detestava, mas infelizmente, outra vez, levaria trabalho pra casa. O maldito caso da menina desaparecida intrigava-o. Levaria aquele caso na mente o resto do dia, da semana, enfim martelaria no pensamento. Era um jogo de quebra-cabeça, onde as peças não se encaixavam. Faltavam algumas, sobravam outras.
      
O terceiro menino da bicicleta, naquela manhã entrou correndo em casa, vindo avisar que a sua vó estava no meio da sala estirada, e que sua irmã desparecera. Ainda eram nove horas da manhã daquela quarta-feira, muito cinza, quando isso acontecera. O dia amanhecera nada normal. E infelizmente acontecera. Os outros amigos dos meninos estavam jogando bola no campinho, e nada viram de anormal. A não ser um carro de luxo que ao entrar no subúrbio chamava sempre a atenção. Parou na esquina e ficou um tempão lá, sem que ninguém saísse de dentro. Um grupo de meninos que assistia a pelada ficou observando. Sentado na linha lateral do campo. Olhavam pro jogo, olhavam por carro. Os que jogavam também, entre uma jogada e outra olhavam. Um senhor idoso passou a caminho da quitanda, um dos rapazes lá da esquina pediu-lhe que lhes desse algum trocado. A intensão era comprar um frasco de cola de sapateiro para se drogar. O velho, irritado com a abordagem esquivou-se. Foi derrubado, um dos garotos meteu a mão em seus bolsos à cata do dinheiro que achava que havia nele. Mas só encontraram um canivete, um molho de chaves, uma carteira que só tinha cartões de apresentação de mototáxis e disk-quentinhas, uns talões da companhia de energia e da água não quitados, a carteira que dava-lhe direito, como idoso, de andar nos coletivos gratuitamente, um pente ensebado, sujo.

Esmurraram lhe perguntando onde escondera o dinheiro, ele nada disse. Apenas esbravejou, tentando levantar-se. O sangue do seu lábio estourado vermelhou um pouco da poeira da estrada de terreno baldio. Dona Esmeraldina não sabia explicar direito o que acontecera estava muito confusa. Só lembrava nitidamente de estar sentada na cadeira da máquina de costura quando foi arrastada com muita força. A brutalidade do seu agressor fora tanta, que ela perdeu o equilíbrio, foi ao chão. A dor persistia na região pélvica. Ela dizia que era dor subindo do ‘vazio’ pra responder na espinha, que era como ela chamava a coluna vertebral e o baixo ventre. Levou coronhada de revólver e ficou passando a mão no calombo na cabeça de cabelos branquinho. Achava que era suficiente o que falara.

A morte já havia visitado praticamente todas as casas daquela rua. Começando pelo dono da loja de carros. Nunca na vida ele tinha vendido um carro como no dia que Felix Anderson foi a sua loja. Disse: “Eu quero aquele carro”. E como demoraram a atendê-lo simplesmente entrou num que estava na vitrine estourou a vidraça da loja, e foi se embora guiando seu mais novo e único automóvel, jamais adquirido na vida. Um talão de cheques inteiro no valor das prestações deixou assinado no birô da concessionária, e foi-se embora. Os cheques nunca seriam compensados, não tinha fundos. E dona Júlia, quase quarenta anos depois diria: “Como eu queria ter um carro daqueles. Antes que venha à morte.” Tagor disse-lhe que mais do que um carro, melhor era andar a cavalo. Viajar de carruagem, atravessar o mar de navio, sangrar as nuvens de dirigível. Justo ele, que já havia feito viagens em todos aqueles transportes. Dona Júlia disse que quando casara foi da igreja pra casa à cavalo. Mas não podia desviar do foco. Sua irmã havia desaparecido e a vila de Étole Chavalier estava afundando. Como assim afundando? Isso mesmo, uma equipe de agrimensores contratados pelo condado. Com seus teodolitos e varas milimetradas puseram-se a fazer medidas até conseguirem as provas. Do alto do morro mais alto do entorno da vila dava pra perceber, algumas montanhas nunca antes vistas daquele ponto agora estavam visíveis porque outras elevações baixaram de altitude. O governo teria que tentar reverter a situação. Enfim saber o que estava acontecendo pelo menos. Do jeito que estava não dava pra continuar. A vila inteira iria desaparecer, caso se confirmasse aquela teoria. E ainda mais as profecias de um louco que atendia pelo nome de “Candeeiro” que apregoava em praça pública que a vila estava afundando por castigo, pelos pecados dos aldeões, pelas falcatruas do prefeito, pelas sevícias das mulheres mundanas, dos ladrões e viciados em jogo e pelo uso de drogas. E anunciava em tom profético: “Arrependei-vos! Bando de serpentes! O fim está próximo!” Lembrava em tudo o batista bíblico.

O policial, dentro da viatura. Encontrou Tagor quando ia pro subúrbio, parou, desceu. Ficaram conversando. Disse que tinha saudade do tempo em que era jovem, que estudara na escola de freiras. Falou dos amigos de infância, e que alguns não alcançaram futuro promissor. Lembrava com carinho de cada um deles. João, o filho do pintor, era excelente jogador de futebol, mas não sabia que fim levou. Wilson, tornara-se policial como ele, mas teve diabetes aos quarenta. Não se cuidou. Nem um tipo de dieta, teve gangrena, morrera recentemente. Manuel havia, a cinco anos, num final de ano como aquele, ligado pra ele, desejou feliz natal, feliz ano novo. Pela voz deu pra perceber o quanto estava bêbado, mas também muito emocionado. Apostaria que ao desligar teria chorado. E não mais tornou a ligar. Lamentava pelos que não absolveram os ensinamentos mais úteis de seus professores. E não sabia dizer exatamente, como conseguira chegar a ser policial. Considerava-se um homem de paz, e na profissão errada, talvez. Sabia que os dias de caserna estavam contados, em breve iria pra reserva. Ultimamente sonhava todos os dias com a aposentadoria. Os dias violentos, traumatizantes, quando era jovem e afoito ficariam somente na lembrança. Não se orgulhava muito do que muitas vezes tivera que fazer. Bater, bater, agredir, prender, bater. O delegado com os lábios, fazia um bico de preocupado. Assim fazia toda vez que era obrigado a pensar. Quando estava jogando baralho, principalmente quando estava perdendo, fazia aquela cara. Por detrás dos óculos ninguém sabia o que seus olhos diziam.


Tagor descobrira um invento interessante. Depois de alguns dias fabricando-o, nos porões do seu laboratório na rua do Candelabro subúrbio de Étole Chavalier, eis que ficou pronto. A princípio concebera-o como um aparelho de refrigeração portátil. Devia servir para baixar a temperatura do corpo. Nos dias de calor intenso de verão. Uma espécie de dínamo em miniatura, com uma pequena reserva de gás que cabia acoplado ao chapéu. Ao ser acionado criaria um campo de ar refrigerado entorno de quem o estivesse usando. O dispositivo também teria a opção vapor quente, para o rigoroso inverno francês. Pra se testar a eficiência da geringonça teria que esperar alguns meses. Nada, no entanto, impedia de ver como funcionaria ainda que fosse outono. Ao usá-lo Tagor faria uma descoberta incrível. O dispositivo deixava-o com o poder da invisibilidade. Ao passar em frente a barbearia simplesmente não conseguiu ver sua imagem refletida na vidraça. Os transeuntes não davam conta da sua presença. Mas toda as células, moléculas, átomos, sangue e órgãos do corpo permaneciam no mesmo estado de matéria. De modo que logo descobriria isso, ao colidir com um dos meninos da bicicleta. O menino ficou estupefato ao perceber que batera num obstáculo invisível. Pior, algo que além de não ver, soltara um palavrão.

O que importava no momento era saber onde estava sua mãe. Outra vez veio-lhe o rosto de sua tia entrando na delegacia, para contar ao delegado o ocorrido. E ele ali, apenas um menino frágil, olhos arregalados, indefeso.

Fabio Campos, 02 de janeiro de 2017. 

P.S. Gravura que ilustra este episódio, encontrada aleatoriamente na internet. Autor: desconhecido.

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