AS CINCO VISÕES – A PIRÂMIDE (22º Episódio de Tagor Fashall)



Tagor via a ponte. Do alpendre, da casa amarela de alpendre, dava pra ver a ponte. Era ponte comprida, alta, de concreto, arribada sobre o lajedo. Eram sete corredeiras. Agora mesmo, sete bocas secas. Bocas abertas, olhando pro céu. Assopravam, vento, e lembranças de cinquenta anos passados. Não seria cinquenta anos, muito tempo, diante da eternidade. Braços de homens, pobres, porem misericordiosos, os que a ergueram. Tagor estava à Napoleão. Estar à Napoleão, era ficar sentado num tamborete, como se montasse  a cavalo. As pernas afastadas, os bicos das botas fazendo simetria. Com uma das mãos metida dentro da camisa. Porque todo mundo comentava que Napoleão Bonaparte vivia com a mão direita metida por dentro da túnica. Por conta de úlceras estomacais que tanto o incomodava. O olhar continuava lá, nas imponentes corredeiras. A desembocadura das águas do rio, naquela época do ano tão árida tinha só tristeza de pedra, e azul de Deus, que olhava de volta. Mesmo assim imaginou as corredeiras cheias. A correnteza de águas, espumas dançando entre as pedras deixando as pernas azinhavradas, da cor da pele da cabocla.

Um gato enorme surgiu, no muro de arrimo. Escalava a cabeça da ponte do lado da casa. O gato subia, enquanto o muro descia, perpendicularmente descia. Por Deus, era Derick! Aquele gato era Derick! Tagor saiu em desabalada carreira. Precisava encontrar o velho amigo. Saber o que fazia naquelas redondezas. E tudo pareceria muito estranho, se não fosse segunda-feira. Na ponte, todos os dias pareciam iguais. A não ser na sexta-feira quando o gado apressado, era tangido pro matadouro, atravessando o rio pela ponte. Pietro o italiano parou seu fiat “uno” sobre a ponte, e ficou observando a paisagem. De onde Tagor estava (antes de sair correndo) não passava o homem dum ponto branco (porque estava de branco) sobre a ponte. Tagor, o italiano, e Derick. Três seres indistintamente diferentes. Destinos desiguais. Histórias que convergiam e se cruzavam. O epicentro do encontro, uma pedra pontuda, como se fosse um dedo gigante apontando. Mas para o quê apontava? Talvez um dia descobrisse.

Uma pirâmide no meio do mato, do nada surgida. Devia ter uns 20 metros de altura e o estilo lembrava a dos astecas, com quatro lance de degraus nos lados e uma base, tipo um altar no alto. O gato realmente era Derick. Tagor e Derick outra vez se encontravam. Em plena caatinga, a pleno sertão nordestino. Coisas do ‘nor’, coisas do ‘destino’. Derick disse estar duplamente surpreso: num lugar estranho, naquele fim de mundo, encontrar seu melhor amigo. Um ano fazia que não se viam, uma eternidade parecia ter passado. Derick falou que viera a Barragem de Santana com uma missão. Tentaria descobrir o significado da pirâmide, que povo a teria construído, e com que finalidade fora feita? Contou que os piratas haviam partido. Saquearam um dos acampamentos dos aliens, roubaram uma de suas naves, e foram embora. As escavações, a busca pelo metal precioso continuava, muito embora pouco ouro havia conseguido. Eles aperfeiçoaram um detector de metais, tornando-o mais eficiente. Com precisão matemática o dispositivo acusava os locais onde deviam escavar. Com exatidão indicava as quantidades e mesmo o grau de pureza do minério, até o montante de terra a ser tirado. Derick desconfiava que debaixo da pirâmide do sertão, houvesse um tesouro. Os nativos, no longínquo passado, envolveram as arcas cheias de ouro com um tipo de argila que depois de seca impedia o detector de metais localizar. A argila era rica em uma liga de chumbo. Mas que havia ouro ali embaixo, disso eles não tinham dúvidas.

Um dirigível, no céu do horizonte surgiu. Veio vindo. Devagar veio vindo, quando se deu fé, estava bem aqui, debaixo de suas cabeças. Parado no ar. Sem mais navegar o céu, estacionado de sua viagem. Naquele meio dia, em ponto. Suspenso em cima da conversa de Derick e Tagor. A duzentos anos, antes daquele instante do reencontro aquele mesmo dirigível passou por ali. A 24 de outubro de 1817 pra ser mais exato. E agora, feito um disco de vinil, que por conta duma ranhura repete uma parte da música. O dirigível repetia o trajeto, dois séculos depois. Seu Jorge era o nome do piloto, solitário tripulante da nave. Voltado do túnel do tempo, o Zepellin de um tripulante só. Seu Jorge, um homem viajado, experiente, vivido avançado na idade e no tempo. Trajava umas roupas de marinheiro, na verdade roupas de pirata. Trajes da cor de poeira. Aliás, tudo ali era da cor do pó vermelho do chão do sertão. O bojo gigante da aeronave, os cordames que prendiam os andaimes, os equipamentos, a casa de máquinas, a cabine de navegação tudo incrivelmente, monocromaticamente, cor de poeira. Tudo da cor de barro. Sem pronunciar palavras, ele disse: “-Eu sou Jorge garimpeiro”. Tagor, Derick e Pietro o italiano, os três ouviram, o velho falar. Ele falava dentro de suas cabeças. Pois, de onde estava, do alto onde estava, não daria pra ouvir sua voz. Enquanto eles estavam cá em baixo, na ponte, no mato, no meio das pedras, do rio.

Tudo aquilo, talvez não passasse de fruto de suas imaginação. Cada um deles, naquele momento pensou exatamente nisso. E tinham particularmente motivos de sobra pra pensar assim. Tagor ponderava que tinham imaginação muito fértil. Porém, daria tudo, pra saber, em que realmente podiam acreditar. Lembrava nitidamente de ter saído ao encontro de Antonieta. Naquela tarde, de carruagem dirigiu-se a academia de Belas Artes de Étole Chavalier. Sua amada tinha, aula de pintura. Lembrou-se com exatidão até aquele momento. Quando o cocheiro avisou-lhe de haver chegado, ao abrir a portinhola da charrete sentiu a vista escurecer. Quando acordou estava lá, naquela casa do sertão. O italiano chamou-o a parte. Confessou-lhe que não confiava muito no gato. Algo nele não lhe inspirava confiança. Também Tagor havia notado algo estranho nele, mas não sabia exatamente o que era. A emoção do reencontro o faria relevar tal particularidade, mas o italiano em fim, trouxe-o a realidade. Só havia um jeito de descobrir E a hora era chegada.

Seu Jorge disse, que da outra vez que passou ali, sofreu um ataque cruel dos nativos. Por conta desse ataque perdeu seu companheiro de viagem, seu fiel escudeiro Zacarias, foi atingido por um tiro vindo da mata. Despencou da aeronave e Seu Jorge não sabe que fim levara seu amigo. Homens surgidos de dentro do mato atacou o balão inflável. A frente dele havia um como se fosse o líder, montava um cavalo vermelho, e todos usavam chapéus, a despeito dos enfeites, parecidos seriam com o de Napoleão Bonaparte. Pedras, pedaços de pau e muitos tiros de bacamarte disparados. Pela descrição, tratava-se de um bando de cangaceiros.  Seu Jorge estava navegando muito baixo, a poucos metros do solo, tentando reconhecer o terreno. Pretendia inclusive fazer um pouso na região. O dirigível sofreu sérias avarias, quase sucumbiu ao ataque. No seu diário de bordo registrou aquele dia como o “24 de outubro da Fuga Branca”. Apostando no elemento surpresa arremessou, um a bombordo e outro a estibordo, dois grandes extintores de incêndio, ao tempo que de pistola atirou estourando-os em pleno ar. O gás carbônico que nele havia, acabou produzindo uma nuvem de gelo seco. Daí escondido na nuvem de gás conseguiu despistar dos cangaceiros. A nuvem demorou dias pra dissipar e os índios passaram a chamar aquele lugar de “caatinga” que na língua tupi significava mata branca.

Tagor resolveu por o gato a prova. Fez-lhe perguntas desconcertantes. Envolveu-o em recordações de fatos acontecidos na ilha de Páscoa que somente os dois tinham presenciado. Como de nada sabia o Derick falso desconversava. Sem ter como responder a respeito do povo Motu Nui. A lenda dos homens-pássaros, ou Homem-Pajaro, Manutara uma espécie de gavião da ilha, também conhecido como pássaro da sorte. Sobre a competição dos atletas nativos, nada sabia. Na aldeia de Orango homens, numa competição anual, disputavam as moças virgens, nadando léguas, de uma ilha a outra, carregando intacto um ovo de albatroz. O verdadeiro Derick e Tagor assistiram aquela festividade, havia cinco anos. O vencedor com honras de herói era recebido pelo príncipe Motu Nui. Decorridos três dias da competição, o ovo era esvaziado, preenchido com fibras vegetais, e numa espécie de cocar colocado sobre a cabeça do primeiro colocado. E a partir de então passava a ser denominado de “Manutara”. Sobre sua cabeça, o troféu devia permanecer por um ano. Até que novo vencedor o conquistasse na competição do ano seguinte.

 O Derick falso, desmascarado deu-se por vencido. Ele era na verdade um ciborgue a serviço dos alienígenas. Dentro dele só havia articulações metálicas, chips de transmissão de dados. Seus olhos duas câmaras que filmava tudo.  Se passar pelo gato gigante amigo de Tagor foi só uma estratégia, tão somente para ganhar a confiança de Tagor, e dele obter ajuda para decifrar o enigma da pirâmide. Resolveram procurar o padre da vila de Santana, souberam que ele tinha informações importantes sobre o mistério do tesouro escondido na mata. Não exatamente sobre a pirâmide, mas sobre um certo cangaceiro, sobre outro padre que um dia passara naquela freguesia, e que sua fama chegara a Roma. Arrebanhava multidões com seus sermões, e ser tido como um visionário e até obrar milagres. Uma serpente de dez metros de cumprimento também entra na história. Ameaçado de excomunhão teve que viajar a Santa Sé no Vaticano, para se explicar junto ao pontificado e a cúria romana. O italiano, faltava ele dizer, o que estaria fazendo naquelas paragens. Sua presença parecia não encaixar nessa história toda. Mas como diria Thomas: “-Só que não, né?” Pois muito tinha a ver sim com tudo. A origem da pirâmide misteriosa começava na cidade de Nápole, província de Salerno. Restava saber como e por que viera parar no sertão.

"Visão dos Cavalos. Do livro do profeta Zacarias. Capítulo 1, versículos 7 a 9 "No vigésimo quarto dia do décimo primeiro mês (o mês de Sabat) do segundo ano do reinado de Dario, a palavra foi dirigida ao profeta Zacarias filho de Baraquias, filho de Ado, nestes termos: tive uma visão durante a noite. Percebi, entre as murtas do fundo do vale, um homem montado num cavalo vermelho e atrás dele estavam cavalos ruços, alazões, e brancos. Eu perguntei: "Meu Senhor, que cavalos são estes?". E o anjo porta-voz respondeu-me: "Vou explicar-te".


Fabio Campos, 01 de Fevereiro de 2017.

P.S. A gravura que ilustra este episódio, é do próprio autor, e já ilustrou outra história neste blog. A publicação data de 19/07/2011 Ilustra o Conto "Graf Zepellin em Santana do Ipanema" Vale a pena Ler!

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